segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Capítulo 12 - Reunião (parte 2)

- Você está frio. – Eu disse depois que percebi que as roupas molhadas estavam pesando sobre o meu corpo. Ele não parou de me beijar.

- Você também. – Sam respondeu com os lábios ainda colados na minha pele gelada.

- Você vai pegar um resfriado. – Eu falei preocupada sob a chuva incessante. Ele estava realmente frio e isso causava uma sensação diferente. Um arrepio mais forte, um encontro de opostos entre o quente dos seus lábios e a pele quase virando gelo. Eu não posso negar que estava gostando, mas era loucura continuarmos ali.

- Eu não fico doente. – Ele respondeu ainda ocupado em alcançar com a boca todas as partes do meu pescoço.

Não acreditei. Ele só estava contando vantagem de novo, sejamos sinceros, todo mundo adoece algum dia. E, se insistíssemos em ficar debaixo da chuva, o dia seria, certamente, amanhã.

- Quem é você? O super homem?

- Quase. – Ele sorriu e continuou a me beijar sob a tempestade.




- Sarah vai me matar quando perceber que eu molhei o carpete. – Eu sussurrei assim que convenci o Sam a sair da chuva e passamos pela sacada de volta à sala. Eu segurava suas mãos frias com muita força, de alguma maneira eu sentia que se nossos corpos estivessem completamente separados de novo o universo iria implodir.
Guiei-o até o sofá, então empurrei seu peito com uma das mãos e ele foi obrigado a se sentar. Subi suavemente em cima dele, vi o fundo de sua alma em seus olhos e então, com um beijo leve, me afastei. Ele resmungou chateado, mas ficou no exato lugar onde eu o tinha deixado. Desapareci no corredor.

Achei melhor pegar alguma toalha e um cobertor para que ele pudesse se secar e ficar aquecido. Eu tinha a plena consciência de que eu também estava provavelmente muito fria, mas duvidei com muito vigor que eu estivesse em tão baixa temperatura quanto ele estava. Seus lábios estariam roxos se eu não tivesse feito sobre eles tanta pressão por tanto tempo e ele estava mais pálido que o normal. É claro que eu sabia que a palidez natural se devia ao fato de que ele é uma pessoa fechada e misteriosa que fica trancada no apartamento o dia todo e só sai à noite quando encarna a segunda personalidade com tendências homicidas. É o efeito normal para quem não encara a luz do Sol.

- Meu Deus, você está tremendo.

- Não estou, estou bem. – Ele me contrariou me deixando na dúvida se essa era só outra parte do nosso antigo jogo de não concordarmos um com o outro nunca ou se ele só estava se sentindo envergonhado por ter sido fragilizado pela tempestade. Não havia outro caminho, ele não poderia, é claro, bancar o forte e invencível para sempre. Todos temos fraquezas.

- Tome. – Atirei uma toalha de cor salmão desgastado que encontrei no armário. Ele segurou-a no ar com o costumeiro reflexo ultra-rápido e começou a secar os cabelos. Não estava adiantando muito para mim, já que enquanto ele balançava os cabelos negros no ar, centenas de gotas d’água pingavam sobre o carpete. Mas a felicidade na qual eu me encontrava naquele momento não permitiu que eu ficasse muito preocupada com sermão que receberia da minha mãe quando ela chegasse em casa.

- Eu sinto muito. – Ele enrolou o cobertor azul marinho com ostrinhas brancas estampadas sobre o corpo e encarou as minhas costas enquanto eu mexia em uma das gavetas da cozinha procurando uma caneca. Eu não disse nada. Continuei fazendo barulho ao empurrar alguns talheres que estavam atrapalhando a minha visão do fundo do armário. – Eu... – Sam continuou um tanto indeciso. Realmente, não era o momento em que eu queria discutir os eventos que se passaram nos últimos meses. Até ali, a noite estava perfeita. Não fazia sentido arruiná-la diante de velhas e longas questões mal resolvidas. Ele não pensava assim. – Eu fiquei furioso com você. Diante de várias atitudes suas e minhas também. Eu só não estava entendendo o que estava acontecendo comigo.

Eu peguei duas canecas amarelas grandes que consegui encontrar no meio de toda a bagunça que, tenho certeza, estava sendo acumulada por mim mesma há dias. A tremedeira das minhas mãos, causada pelo frio ou pela excitação do momento, não me ajudara em nada. Balancei os cabelos ao vento para tentar tirar um pedaço de franja que estava sobre meus olhos e então encontrei os pontos verdes a alguns metros de distância. Por segundos, todo o frio foi embora e fui preenchida pela calmaria, como uma correnteza de água morna que me aquecia em pontos estratégicos. E então era como se não houvesse mais tempestade lá fora.

- Nunca me senti assim antes, Mel. – Ele confessou ainda tremendo e com as pontas dos dedos com uma coloração quase arroxeada. Eu percebi o medo gritando em seus olhos, um banho de sangue sobre o altar dos infiéis. – Não sei o quão perigoso tudo pode ser. Não faço idéia até onde essa situação pode chegar.

- O perigo vem de todos os lados, Sam. Juntos ou separados, está lá.

Ele disfarçou um leve tremor sobre os lábios pouco abertos. Quando ele disse que nunca havia se sentido assim, há um leque de possibilidades. Ele sempre fora confiante e dono do mundo antes, comigo ele começava a sentir o medo causando arrepios na espinha e uma sensação de enjôo que nunca passa. Era o que eu estava sentindo nas últimas semanas, o horror.

- Eles já estavam atrás de mim, Mel. – Ele relembrou-me com tom de aviso, em seguida, seus olhos se transformaram em gelo e ele me olhou assustado de novo. – Tentaram te matar. Juntos, estamos unindo o útil ao agradável. É quase um pacote para que eles peguem as duas presas com uma mesma tacada. – Ele engoliu em seco. Resolvi parar com o contato visual já que eu notei que isso o estava deixando ainda mais nervoso. Enchi três quartos das canecas com leite que encontrei na geladeira e adicionei chocolate em pó. – Eu não me importava com a morte. Nunca tive tanto medo do perigo.

Mexi as duas misturas com a ajuda de uma colher. Era, de fato, um assunto desagradável para aquele momento, mas eu deveria ouvi-lo. Ele não tinha mais ninguém no mundo para conversar, com exceção do avô que morava a algumas dezenas de quilômetros de distância. Sam crescera solitário, cheio de problemas e confiava em mim. Encontrava em mim um porto seguro, alguém com quem ele poderia contar e conversar sempre que estivesse se sentindo ameaçado. E era tudo muito novo para ele.

- E o que mudou? – Perguntei enquanto enfiava as canecas de qualquer jeito dentro do microondas. Tecnologia é mesmo adorável.

Ele me focou com os olhos como se eu tivesse feito uma pergunta absurda, como se estivesse louca. Sua face se transformou em uma breve careta que logo já estava virando uma expressão de plena incredulidade.

- E se você morrer?

- Eu não vou morrer. – Respondi na mesma hora como se fosse outro pensamento absurdo, mas, no fundo, eu também tinha esse receio. A vida é preciosa demais para que não temamos perdê-la. E eu tinha tantos planos pela frente e quem cuidaria de Sofie, Rebecca...?

- E se eu morrer?

Não consegui dizer nada novamente. As palavras não saíram. Elas estavam lá, mas não foram pronunciadas. Eu queria ter dito que não aconteceria, assim como dissera segundos atrás, mas não fui capaz. Esse medo sim era real. Esse medo sim congelava as minhas cordas vocais e formava um nó na garganta, como se houvesse uma rede tampando o canal e nada mais passaria por lá. Todos os meus planos futuros envolviam a presença do Sam. Faculdade, viagens, casamento, filhos, velhice, todos. E se ele não estivesse lá, como poderia haver futuro?

Meus olhos arderam um pouco, mas eu não quis demonstrar fraqueza diante dele. Encarei a luz da cozinha. Não havia nada de interessante lá e o frio voltara a me atingir como um tapa, uma onda na praia que induz a acertar a rocha. E eu não sabia se eu era capaz de suportar esse baque.

No fundo, eu tinha certeza que ele preferia que eu estivesse bem com isso. Ele preferiria que eu estivesse esperando a sua morte e, quando a hora chegasse, eu seguiria em frente. Triste, mas seguiria o resto do meu caminho, traçando pontos luminosos na escuridão. No entanto, como eu poderia saber se conseguiria? Como eu poderia continuar sem imaginar como tudo poderia ter sido diferente? E, acima de tudo, como eu teria certeza de que ainda estaria inteira o bastante para viver?
Não, não era possível. Não era possível que eu lhe prometesse que estaria tudo bem com essa situação. Não era possível que eu lhe dissesse que eu ficaria bem vivendo no preto e branco. E mesmo assim eu continuava a encarar o teto.

- Você sabe que vai acontecer. – Ele afirmou com tanta certeza que senti aquele tapa de novo, como se fosse real. – E se você já reagiu assim agora, não gosto de imaginar como reagirá quando...

- Você não sabe. - Eu interrompi. Fui igualmente fraca ao impedi-lo de terminar aquela frase, era demais para os meus ouvidos.

Ele apoiou o rosto sobre as mãos como se estivesse desorientado. Estava claramente se arrependendo sobre até onde fora capaz de manter aquela situação. Era isso. Ele sabia que deveria me matar por vingança, mas estava apaixonado e agora temia nosso momento da separação. Para piorar, eu não parecia aceitar de jeito nenhum que isso iria, algum dia, acontecer. Ele estava arrependido, tudo isso estava, obviamente, errado.

- Eles vão conseguir o que querem, Mel. – Ele falou com muita firmeza, mas ao mesmo tempo com aquela expressão de quem estava chateado por completo com isso.

- Nós podemos fazer alguma coisa, podemos impedi-los... Eu posso convencer minha família a se mudar e esconderemos você... – Eu comecei a murmurar palavras que saíam o mais rápido que podiam por entre os meus lábios. Era o meu auge da ingenuidade. Sam se sentiu derrotado e observou o carpete. Seus cabelos negros penderam para frente e encobriram boa parte do seu rosto.

- Você é sonhadora, isso é tão atraente... – Ele disse com a voz singela. – Mas preciso que você se atenha ao mundo real. – Desviou os olhos sombrios do chão e voltou a me encarar como se fosse crucial o que seria dito a seguir. – Essas pessoas usam de todos os caminhos, Mel, todos os caminhos para chegarem ao que querem. Os planos podem ser tão perspicazes e horríveis que não poderemos prever. Eu queria ver o sangue dos responsáveis pela morte dos meus pais escorrendo diante os meus olhos, mas nunca cogitei que sairia de lá vivo.

Eu pisquei continuadamente. Não estava acreditando no que eu estava ouvindo. Foi uma péssima idéia discutir tudo aquilo em um momento de plena felicidade, como estávamos minutos atrás.

- Por que você nunca pode pensar que o melhor pode acontecer?

- Eu vivo no mundo real.

- E no mundo real tudo termina em catástrofe? – Eu me recusava a aceitar que o que ele estava me dizendo era uma regra, algo que não poderia ser mudado sob nenhuma circunstância.

Ele piscou os olhos mortificado. Certamente, percebera que o assunto estava nos levando a lugares que estivemos durante semanas ininterruptas, estava nos levando ao sofrimento, ao desalento, a angústia, ao medo. E havíamos conseguido quebrar tudo isso durante ardentes beijos debaixo da chuva, era raro e bom demais para ser estragado dessa maneira.

- Vem cá. – Sam disse com a voz macia como um veludo e acenou a cabeça em direção ao lugar no sofá ao seu lado.

Eu retirei as canecas de porcelana do microondas e debrucei-as sobre a mesinha de centro da sala quando me aproximei. O leite ficara quente demais por causa da minha distração, teríamos que esperar um pouco se quiséssemos beber sem o perigo de queimarmos a língua. Sentei-me ao lado dele, ele passou o braço com o cobertor por trás dos meus ombros e, em seguida, me abraçou. Foi gostoso já que ele estava bem quente agora e eu ainda estava com frio.

- Vai ficar tudo bem. – Ele sussurrou no meu ouvido e me abraçou mais forte enquanto enlaçava os dedos nos meus cabelos cor de mel. Eu quis acreditar em suas palavras, mas sabia que ele não pensava nada disso.




- Me dá espaço! – Ordenei a Rebecca que estava deitada em sua cama vendo uns videoclipes no computador portátil. Ela moveu-se para o lado e eu me afundei no colchão macio.

O clima naquele dia não tinha mudado muita coisa. Da janela do quarto da Becca, eu conseguia ver um acúmulo de nuvens negras que ameaçavam outra tempestade forte, quase como a do dia anterior. O frio também estava começando a aparecer e bebidas quentes se tornavam mais freqüentes que os costumeiros potes de sorvete que tomávamos quando nos sentíamos infelizes demais e nada mais importava, nem o regime e as gorduras localizadas.

É claro que eu já tinha passado desse estágio. Havia decidido durante os meus pensamentos profundos na outra noite, após despedir-me do Sam com um longo beijo em frente à minha porta, que eu não iria mais ficar encontrando obstáculos na nossa relação. Se ele dissera que me matar não fazia mais parte do seu plano e o que estava sentindo era, realmente, verdadeiro então eu acreditava. E também acreditava que conseguiríamos escapar dos nossos problemas e, um dia, nos casaríamos bêbados em alguma praia do Caribe. Eu, da mesma forma, havia resolvido que não ficaria louca de raiva só de pensar nas garotas que aquele homem comentou na reunião. Eu tinha que aceitar que ele tivera outras antes de mim, não dá para julgá-lo por um passado no qual ele ainda não me conhecia. Resumindo: “futuro e presente” eram as minhas novas palavras-chaves.

Rebecca também parecia alegre. Apesar de ainda estar muito chateada com todos aqueles problemas com o Lean, estava conseguindo disfarçar bem. Ela era melhor que eu nesse aspecto, fazia o tipo “ignorarei você daqui para frente já que você não me quis” e a nossa mesa nos intervalos de aula era habitada por aqueles momentos constrangedores em que ninguém fala nada. Exceto pelas intervenções da Sofia que, hora ou outra, passava minutos desenvolvendo explicações complexas sobre como funcionam alguns aparelhos do cotidiano, por exemplo, um acendedor elétrico de um fogão. É claro que, às vezes, ela tentava levantar conversas sobre as maneiras realmente democráticas com as quais os aliens conduziriam o nosso planeta, mas Rebecca logo cortava dizendo que a vidente a proibiu de tocar em tais tópicos.

- Ei, eu gosto dessa música! Por que tirou o som? – Perguntei percebendo que a minha melhor amiga estava toda derretida na frente da tela do notebook, mas nenhuma música estava tocando no videoclipe.

- Esse vocalista é tão lindo... – Ela suspirou com os olhos ainda vidrados. – Como ele se chama mesmo?

- Bill. Alemão é sexy.

- Alemães são sexy. – Ela me corrigiu enquanto me olhava pela primeira vez desde que entrei em seu quarto. Fez uma cara intrigada. – Você está diferente.

- Não estou. – Sorri contente, mas esperando que ela percebesse o que havia mudado.
Ela sentou-se sobre os lençóis desarrumados cor rosa bebê e me olhou com tanto interesse e atenção quanto estava observando a tela segundos antes. Ela deveria estar imaginando de que maneira eu estava diferente, mas eu sabia que ela logo descobriria.

- Você está brilhando. – Ela sorriu quando acertou em cheio o meu estado de espírito. – Espera... O que aconteceu? – Becca perguntou baixinho e eu imaginei que era uma pergunta que ela fizera para si mesma. Logo em seguida, abriu a boca em estado de susto e excitação e apontou-me o indicador ossudo e branco enquanto eu corava um pouquinho. – O que você e o Sam aprontaram ontem?! Eu sabia que iria rolar alguma coisa! – Disse feliz agitando freneticamente as mãos no ar. – Detalhes, detalhes!

- Estamos juntos outra vez. – E nem eu consegui esconder a felicidade por trás dessa frase.

- Isso me lembra... – A loira rolou os olhos indecisa. – Quando vai me contar o real motivo da separação?

- Eu já contei! – Menti.

- Você não quer que eu acredite mesmo que vocês brigaram porque ele ofendeu uma das bandas que você gosta... – A desconfiança brotou em sua face bonita.

- Minha banda favorita! – Corrigi tentando tornar o delito mais grave, mas é claro que ainda não era uma história plausível.

Eu não poderia contar a Rebecca a verdade sobre a nossa separação. O que uma melhor amiga deveria dizer a outra quando esta lhe conta que o namorado tinha planos frios e vingativos para matá-la? Exatamente. Se fosse o contrário, eu diria a Rebecca para procurar a polícia no mesmo instante e nunca mais vê-lo na vida, mas a minha situação não era tão simples assim.

Eu até havia tentado ficar longe dele assim que descobri a verdade. O medo era grande e muito real, a dor da traição e as memórias falsas praticamente me destruíram, mas eu não poderia, simplesmente, ir embora. Eu não tinha mais para onde ir, não conseguiria fazer Sarah acreditar ou sequer falar comigo e ainda estava – e estou – correndo sérios perigos de morte que não envolviam o Sam. Ele queria a encomenda, mas outros também a queriam e estavam dispostos a fazer coisas ainda piores comigo e com a minha família, visto que mostraram isso na tentativa de seqüestro que só foi fracassada porque o próprio Sam me salvou. E então eu não sabia mais em que acreditar e tudo virou de ponta-cabeça.

O importante é que agora eu tinha certeza. Não havia fatos ou dados empíricos que me mostravam que ele, de fato, desistira do plano inicial. Não era possível provar que ele estava dizendo a verdade quando confessou que me ama, mas eu, agora, acreditava com todo o meu coração nisso. Não havia mais dúvidas, confusão ou mistério, algo dentro de mim apontava que ele realmente me ama e eu estava convicta. Mas tenho a certeza de que Rebecca ou qualquer outra pessoa a quem eu contasse tudo isso diria que eu estava ficando louca e que iria chamar a polícia por mim naquele exato momento. E iria me dizer que ele estava me manipulando de novo e que eu não deveria acreditar em mais nada do que ele dissesse. Então não, eu não contaria a ninguém o motivo que nos fez ficar separados por semanas que pareceram a eternidade.

- Fale comigo quando estiver pronta para me contar a real razão. – Ela disse de uma maneira fofa e me abraçou. – Mas fico feliz que você esteja melhor. Ninguém acreditava em você quando você estava quase desmoronando e faltando nas aulas mas insistia que estava bem, sorte que passou. – Sorriu contente. – Ele te faz bem, dou o maior apoio.

- Obrigada. – Eu suspirei me sentindo um pouco culpada.

- E ei, sabe por que eu fiquei ainda mais feliz por saber disso? – Rebecca perguntou enchendo-se de animação novamente. Eu tive medo, mas perguntei mesmo assim.

- Por quê?

- Isso significa que temos mais um convidado para a sua festa de aniversário! – Ela comemorou balançando de novo as mãos e cortando o ar com as unhas roxas. Começou a estender os dedos como se estivesse fazendo uma contagem. – Eu já pensei nos balões, flores, bolo, comida, bebidas, é claro, roupa... O que mais falta? Ah, precisamos escrever a lista e imprimir alguns convites que devem ser entregues e confirmados o quanto antes para a gente ter, mais ou menos, idéia de quantas pessoas virão...

- Rebecca! – Eu a interrompi e ela pareceu ficar bastante chateada com isso. – O que aconteceu com a pequena reunião que eu sugeri alguns dias atrás?

- Você vai fazer 18 anos, precisamos comemorar! Só se faz 18 anos uma vez na vida, é como dizem...

- Só se faz qualquer idade uma vez na vida! – Retruquei incomodada. Não é que eu não gostasse de grandes festas, eu só não queria ser o centro das atenções em uma delas. Além do mais, eu não tinha amizade com gente o suficiente para sequer lotar a sala do meu apartamento. Qual o sentido de encher uma casa com duzentos convidados se eu realmente só conhecia quinze deles? – Memorize a minha lista que é bem pequena: você, Lean, Sam, Sofia, Sarah e Noah. Isto é, se a Sarah não for trabalhar no dia, o que eu duvido muito.

- Sete pessoas? – Ela perguntou incrédula.

- Contando comigo, sim. Mas, se você quiser, você pode levar algumas amigas suas, já que eu sei que o Lean vai pedir para convidar alguns amigos dele.

- Por que você está supondo que eu faria a mesma coisa que aquele...?

- Não estou supondo nada. Só comentei. – Defendi-me prontamente. – Não seja infantil. Ambos são meus amigos e você sabe que, em aniversários, eu só desejo ter os amigos por perto. – Ela rolou os olhos e eu sabia que estava se segurando para não discutir sobre isso, coisa que eu tenho certeza que incluiria as frases “eu te conheço há mais tempo” ou “sua melhor amiga sou eu” e ainda “quem toma sorvete direto do pote com você quando você está mal?”.

- Você não acha que vai ser estranho? – Perguntou usando um tom diferente e eu comecei a imaginar se ela ainda estava falando sobre o Lean. – O Noah tentou te beijar e agora você está com o Sam. Eles já não se gostavam antes...

Dei de ombros. Era outro fator no qual eu ainda não havia pensado muito bem. Da mesma forma que o Sam não gostaria de saber que o Noah tentara me beijar - isto é, ignorando a impressão que eu tive de que ele estava nos observando da sacada naquele dia – e que eu ainda o convidara para minha “reunião de aniversário”, o Noah também não gostaria de perceber que, após ter me apoiado e me ajudado tanto a esquecer as mágoas eu voltara, justamente, para os braços da fonte delas. Mas eu não podia excluir um deles só porque não se gostavam. Qualquer pessoa que me force a excluir alguém para escolhê-la não é uma pessoa digna de ser escolhida. Se os dois têm seus problemas, ótimo, que se resolvam sozinhos, eu não iria entrar no meio disso. Apesar de já estar no meio.

- Vai ser estranho. – Comentei enquanto me mexia sobre o lençol. – Mas o que eu posso fazer? Não é como se eu tivesse criado falsas esperanças para o Noah...

- Mas ele vai se sentir mal ao vê-la com outro. – Rebecca normalmente não se importaria com os sentimentos de mais ninguém, mas adquirira certa simpatia pelo meu novo amigo desde aquela festa da Paola na qual, de acordo com ela, ele fora tão cavalheiro e tão divertido.

- Bom... – Eu disse incerta enquanto tentava me imaginar na situação dele. – Acho que... Acho que se ele não quiser ir, vou entender completamente.

- Mas espero que ele vá, se não seremos só seis. – Minha amiga falou baixinho e eu acreditei que ela não tinha essa intenção, mas acabou pensando alto.

A tarde passara bastante rápido, o que me fizera relaxar e esquecer o exaustivo período de aulas pela manhã e a excitação crescia à medida que o Sol ia desaparecendo. Era divertido passar esse tempo todo com a Rebecca, eu não falava muita coisa, mas ela se encarregava de me contar todas as novidades e segredos acerca da vida sem graça das pessoas daquele colégio. E como eu invejava aquela vida sem graça. Hora ou outra, ela tocava no assunto do aniversário de novo, mas eu estava decidida a não colaborar com essa idéia de fazer uma grande festa, mesmo que ela tenha oferecido a própria casa bonita e espaçosa.

Eu nunca gostei muito de festas ou gente demais amontoada em um mesmo espaço físico, contudo eu estava concordando em fazer uma pequena reunião porque, primeiro, eu achava que poderia ser realmente divertido e, segundo, para evitar que alguém tenha a “brilhante” idéia de me fazer uma festa surpresa, algo bem provável que viria da Rebecca, que ama essas coisas. Então era preferível que eu fizesse algo simples, mas que eu tivesse o controle pleno.

- Tem outro problema. – Refleti em voz baixa enquanto ouvia uma história sobre a Suzi Yang ter sido encontrada no armário do David, capitão do time de futebol. Outras nuvens negras apareciam pela janela encobrindo o entardecer.

- O quê? – Rebecca, um pouco confusa, interrompeu a história.

- Talvez o Sam fique chateado por eu não tê-lo convidado. – Tomei um gole do meu refrigerante de laranja cuja lata já estava fazendo uma marcação circular na mesinha de madeira devidamente encerada.

- Não entendi. – Ela se acomodou na poltrona e me observou um pouco abalada, talvez ainda pelo choque da história sobre a Suzi. – Você disse que iria chamar o Sam.

Levantei as sobrancelhas compreendendo o motivo da falta de entendimento dela, tudo sobre o Sam era confuso demais.

- Estou me referindo ao Sam mesmo... Durante o dia.

- E como andam as coisas com ele? – Ela perguntou bastante interessada com a possibilidade de um novo romance com a mesma pessoa. Eu me senti bastante mal.

- Encontrei-o hoje de manhã quando estava saindo, para variar, atrasada para o colégio. – Suspirei e senti o ar pesando dentro dos meus pulmões. – Ele disse que teve um daqueles “sonhos” comigo de novo.

- Isso significa o quê mesmo? – Ela perguntou de olhos arregalados enquanto dava mais uma colherada na sua vasilha de pudim.

- Problema. – Fui sincera. – Os dois não dividem a mesma memória, mas, por algum motivo, eu sou a única pessoa que resgata flashes, como se fossem fragmentos.

- Então como ele ainda não sabe que namora você escondido dele mesmo?

- Porque, como eu disse, não são imagens ou memórias nítidas. O Sam me disse que, muitas vezes, quando eu encontro sua outra parte no elevador, ele se lembra de impressões confusas, sons e imagens que se misturam, nada muito fiel.

- Ah. – Ela balançou a cabeça entendendo o que eu queria dizer, mas logo a interrogação surgiu de novo em seu rosto. – E o que você diz para o Sam do dia quando ele pergunta?

- Concordo com a idéia dele de que são apenas sonhos. Ele pensa que está dormindo quando o outro está se encontrando comigo então, por mais que eu odeie tudo isso, é uma história que faz sentido. – Dei de ombros, mas ainda chateada. Estava pensando em convidar o Sam diurno para o meu aniversário mesmo sabendo que ele não poderia ir. Situação horrorosa na qual eu não conseguia evitar achar que eu estava sendo malvada.

Rebecca fez uma cara de desconfiança. Estreitou os olhos castanhos e me observou com um sorriso nada convincente. Resolvi provar o pudim.

- Você acha mesmo que ele compra essa? Digo, como ele não sabe o que acontece com ele mesmo? Não acredito que ele acha normal todas essas historinhas mal contadas de você e da outra personalidade, que, para mim, parece um cara lunático e perigoso.

- Eu não acho que ele acredite. – Eu disse enquanto ignorava o fato de a Rebecca ter chamado o Sam de lunático e perigoso sem nem ao menos conhecê-lo direito, sem nem saber que ele já matara pessoas. – Tenho quase certeza que ele sabe e está me pressionando para descobrir o que eu sei, já que essa história dos flashes nunca havia acontecido antes.

- E não é só isso... Você disse que o Sam comprou um carro para você aprender a dirigir, como o outro não percebe o dinheiro faltando? Não é pouco...

Rebecca tinha um ponto. Era, no mínimo, estranho ter tanto dinheiro saindo da conta e ele sequer perceber isso. Sem contar todas as outras coisas esquisitíssimas, por exemplo, as roupas completamente diferentes que os dois usavam. Como o Sam diurno abria o guarda-roupa e se deparava com aquele monte de camisetas pretas de diferentes bandas que ele nem gostava e não achava anormal? Também tinham os hematomas. A personalidade noturna não parava quieta, vivia pulando de sacadas, se metendo em brigas, bares e tentativas de seqüestro a fim de salvar a vizinha. No outro dia, provavelmente estava quebrado e cheio de marcas que o outro não se lembra de ter adquirido. Quero dizer, quem nunca se deparou com um ponto roxo na pele e não sabia onde tinha se machucado? Certo, normal. Mas e quando isso acontece quase todos os dias e em proporções bem maiores?

Enfim, de alguma forma, o outro Sam deveria saber o que estava acontecendo com ele. Eu só não sabia se ele estava tentando esconder isso ou se estava passando por aquela fase de negação, na qual se evita propositalmente enxergar o que está bem na frente da sua cara. Ou então ele era ingênuo demais e, realmente, não sabia nada e estava confuso. A ingenuidade combinaria bem com a simpatia e a delicadeza extremas que ele possuía. Era uma pessoa muito doce, inversa àquela que encarnava durante a noite.

Isso me levava ao ponto inicial: como eu teria a coragem de convidá-lo mesmo sabendo que ele não poderia estar comigo no período da noite e, provavelmente, se sentiria mal por isso. O fato é que eu realmente amava a personalidade noturna. Nunca em meu curto período de vida eu tive tanta certeza de uma verdade como tenho dessa. Mas como eu poderia descrever, então, o que eu sentia quando o via durante o dia? Será que eu é que não estava sabendo separar as coisas ou os sentimentos eram, de fato, diferentes?

É claro que eu o amava de qualquer maneira, mas quando a noite caía, era uma paixão arrebatadora. Uma sede de lábios, de corpos; vontade de segurar seus cabelos negros como a escuridão e não soltá-los nunca mais. Era como se o mundo fosse acabar no próximo minuto e tivéssemos que matar toda a vontade com urgência. Com o outro era diferente. Eu o encontrava pelas manhãs no elevador ou quando ele sai para passear com o Tosha e sentia meu coração bater mais forte, as mãos suavam e eu corava quando percebia que as bochechas dele também estavam ficando rosadas. Era um sentimento mais ingênuo. O desejo agora era de sentar-me com ele no sofá e acariciar seus cabelos enquanto ele estivesse deitado no meu colo, observá-lo dormir sorrindo de maneira singela e eu nunca esqueço a vez em que andamos pelo centro da cidade de mãos dadas. Não tivemos nada além disso, mas os laços afetivos pareciam ser mais fortes. Por isso eu queria que ele estivesse lá também.

- Você ficou calada de repente. – Ela observou um pouco preocupada, mas logo percebeu que estava tudo bem.

- Eu estava só viajando um pouco nas idéias. – Respondi chateada.




Os dias se passaram mais rápidos do que eu poderia esperar. Era incrível como a presença do Sam influenciava consideravelmente no tempo e ele parecia correr mais ligeiro. O mês que antecedia o meu tão tenebroso aniversário passara num piscar de olhos e logo eu já conseguia sentir a minha respiração descompassada e o coração lutando para sair do peito.

De acordo com aquela carta que eu recebera semanas atrás, meu pai havia me deixado uma encomenda que eu deveria buscar assim que chegasse à maioridade. Além de curiosa, eu também estava ciente de que meus problemas aumentariam assim que eu recebesse esse pacote, seja lá o que ele contivesse. E se eu não estivesse pronta? E se eu não quisesse saber o que há lá dentro? Eu estaria correndo perigo mesmo que meus olhos nunca pousassem sobre tão procurado objeto?

Uma das minhas maiores vontades era, definitivamente, entregá-lo para quem quer que fosse que estava nos vigiando. Eu não o queria e, era provável, que eu nunca fosse sentir falta de algo que nunca cheguei a saber o que era. O problema é que algumas frases ditas pelo Sam em um passado que parece distante feito a pré-história não paravam de pipocar em minha cabeça. “Seu pai quis que fosse entregue somente para você, confiou que você teria a responsabilidade...” E isso me enchia de culpa, mas, bom, ele não deveria estar pensando muito em mim quando resolveu me deixar essa “coisa”. De alguma forma, ele deveria saber que estavam atrás disso, por isso deixou tão bem guardado e com expressas ordens para ser entregue a mim. Mas que tipo de pai coloca a própria filha em problemas e depois morre? Chutei o pufe que se encontrava no chão do meu quarto, um pouco de espuma saiu de uma rachadura recém-aberta. Ótimo.

Minha raiva não diminuiu durante o dia todo. Eu completaria dezoito anos na manhã seguinte e ainda não sabia o que era o melhor a se fazer. O medo corroia meu peito e, a cada vez que essa idéia me surgia à cabeça, eu sentia meu estômago revirar, então balançava os cabelos ao vento como se estivesse espantando tal pensamento. Difícil.

Mais complicado ainda era agüentar toda essa expectativa sem o Sam para me ajudar. Ele não era um cara de muitas palavras, em ambas as personalidades, apesar de ter um vocabulário mais frio e pessimista durante a noite, mas o simples toque da sua pele branca como cera já me desviava a atenção dos problemas.

Eu mal conseguia acreditar que já iria fazer um mês que estávamos juntos de novo. Os dias pareciam ser muito longos, mas as noites passavam rápidas como um suspiro e logo ele já estava, com muito custo, se despedindo e dizendo que eu deveria dormir. Era o momento mais horroroso quando eu o levava à porta e nossos dedos se separavam, o frio voltava sem piedade. Logo eu via suas costas se distanciando de mim pelo corredor e o maior desejo era sair correndo de camisola e puxar-lhe para dentro de novo. Mas eu não poderia.

Sofia já estava terminando o curso e logo voltaria a ficar dentro de casa durante a noite, já que ela nunca saía para ir ao cinema ou ao shopping com as amigas. Aliás, eu nem sabia se ela tinha amigas no colégio e, ultimamente, não estava permitindo que eu a levasse até a porta de sua classe. Mas ela não me preocupava muito. Quando ainda não estudava à noite, ela passava o tempo todo trancada dentro do quarto e só saía de lá quando eu a chamava para jantar. Então ela reclamava da comida industrializada e instantânea, arriscava comer um pouco e logo voltava para o cômodo trancado. Era muito reservada.

O problema é que ela gostava de ficar sozinha, mas ainda não era surda e nem cega e, acima de tudo, não era muda. Como toda e qualquer irmã mais nova, adorava ameaçar dar com a língua nos dentes diante de qualquer situação de risco. Como Sarah não fazia idéia da minha situação com nosso tão estimado vizinho, Sofia sorria com desdém a cada vez que eu lhe dava uma ordem e me lançava aquele olhar desafiador do “vem me obrigar”. Então tomava as rédeas da questão. Sim, eu estava sendo controlada pela minha irmã caçula. Por mais estranho que possa parecer, isso também não é tão ruim assim, ela sempre parece tem perspectiva e bom senso, muito mais madura que qualquer criança de sua idade.

Comecei a esfregar as mãos freneticamente e a andar pelo quarto, para variar, bagunçado. Olhei para a janela, mas logo senti a esperança se esvaindo de cada célula do meu ser: ainda estava claro. O sol brilhava no ponto mais alto do céu e vencia algumas nuvens cinzentas que competiam entre si por algum espaço ao seu redor. O clima mudara muito desde o mês passado quando eu me aventurei a quase pegar um resfriado por ter tomado chuva na sacada.

Eu preferia o clima frio. Esse calor, além de me causar um pouco de aflição, ainda aumentava a preguiça que eu tinha para fazer qualquer coisa. Sorte que, mesmo com todas as preocupações, minhas notas na escola estavam aumentando. Acho que a felicidade plena me fez prestar mais atenção no que os professores estavam tentando fazer com que a gente entendesse. Não funcionava para Rebecca. Se ela continuasse no ritmo em que estava, iria pegar uma recuperação semestral. Mas é claro que ela não esperava que suas notas subissem com a sua constante distração em observar o que o Lean estava fazendo. E, não importa o quão intenso eu tenha tentado, eles não estavam dispostos a conversar um com o outro. Era como tentar tirar leite de pedra.

Todas essas preocupações com a minha irmã, meus melhores amigos e minha própria segurança estavam somadas e me assombravam nos momentos em que eu passava sozinha, como agora, andando sem parar ao redor do carpete. Um alívio brotava em mim quando eu mentalizava a imagem do Sam e o quanto eu gostava do seu cheiro e da sua voz fria e áspera. Funcionava por alguns segundos até eu me lembrar, novamente, de que ele não estava aqui comigo agora.

Ontem à noite nós fomos ao cinema. Foi bastante divertido porque brigamos bastante até decidirmos qual filme iríamos ver. Eu não estava muito a fim de ver um daqueles romances “água-com-açúcar” e pensei que seria uma boa escolha se assistíssemos um drama de história real ou algo parecido. Ele queria ver terror ou um daqueles filmes bem sangrentos de ação em que as pessoas morrem dos jeitos mais inusitados e o principal não morre de jeito nenhum. Acabamos decidindo por comédia. Sam disse que tinha gostado, mas eu sabia que ele não achara graça nenhuma do filme todo, isto é, das partes do filme que conseguimos ver.

Uma das coisas que eu mais gostava no Sam era justamente isso. Era completamente verdade quando ele me dissera que não estava fingindo nos momentos que passamos juntos antes da briga, mesmo quando ele estava me omitindo a história toda. Ele é muito verdadeiro e tem dificuldade enorme em esconder sua personalidade forte. Então ele não se preocupava muito em fingir que estava sequer prestando atenção no filme e não se conteve quando as luzes apagaram e ele começou a alisar a minha coxa.

Eu também não me importei muito se nossos beijos ardentes estavam atrapalhando as pessoas que realmente queriam assistir o filme. Não havia crianças naquele horário e a censura também não permitia, o que significava que cada um ali já era grandinho o bastante para se retirar caso se sentisse incomodado comigo e com o meu meio-namorado. Falando em “meio-namorado”, foi um termo que eu achei divertido para designar a nossa relação, achei que dava um toque de humor à coisa toda, mas Sam me olhava de um jeito mortificante a cada vez que eu usava essas palavras. E eu sabia que era porque, se ele pudesse escolher, seria meu namorado por inteiro.

- Senti a sua falta o dia todo. – Confessei. Ultimamente, eu estava mais segura sobre aquela questão de me entregar completamente ao que eu estava sentindo. Até porque, eu sabia que ele retribuía tal sentimento, mas ainda assim eu ficava um pouco retida quando tentava mostrar o quanto eu o amava. Como eu já comentei várias vezes, eu não suporto palavras clichês e vazias e tudo o que eu pensava em dizer soava muito banal e até meio bobo na minha cabeça.

Ele me observou com os olhos tristes. Eu deveria saber que, para mim, isso parecia uma declaração ou coisa do tipo, para ele, era só mais uma evidência das restrições que o nosso meio-namoro tinha que suportar.

- Mas estamos juntos agora. – Sussurrei no seu ouvido e percebi que alguns pêlos se arrepiaram na base de seu pescoço. Ele passou as mãos firmes sobre os meus cabelos castanhos.

- Sabe as ondas que molham a areia da praia? – Ele perguntou baixinho. Uma música alegre soava no fundo, o filme estava começando. Estranhei a pergunta.

- Sei. – Respondi sorrindo. Mexi-me um pouco para melhorar a minha posição na poltrona e encaixei minha cabeça em seu ombro forte. A segurança ali era plena. – Quando eu era pequena e Sofia era apenas um bebê a gente brincava de escrever na areia molhada.

Sam olhou para mim e sorriu satisfeito. Passou o braço por trás de mim e me abraçou de lado. Usou essa mesma mão para acariciar meus cabelos e me trazer para mais perto. Algumas pessoas riram do que quer que fosse que estava acontecendo no filme.

- Ficava bonito, mas era um trabalho meio inútil. – Continuei a refletir sobre um assunto que eu nem sabia de onde surgira.

- Era? – Indagou baixinho. Suspirava feliz enquanto me tinha em seus braços, mesmo que com um monte de gente em volta rindo como hienas.

- Era. – Sussurrei de novo e beijei seu pescoço de leve por muito tempo. Eu achava engraçado como ele prendia a respiração às vezes, parecia que lhe faltava ar ou que os pulmões eram apertados demais para qualquer coisa. – As ondas sempre voltam. Não importa o que você escreva na areia, elas sempre vêm de novo e apagam tudo, não deixam nenhum vestígio do que estivera lá.

Ele cheirou meus cabelos com delicadeza. Senti um arrepio gostoso tomar conta de mim, não tinha certeza se havia como eu ficar assim, tão feliz, em outro lugar com outra pessoa, tanto hoje como no futuro.

- Eu sou assim. – Sam disse por fim pensando ter concluído o raciocínio. Não entendi muito bem a analogia, mas parecia que ele não estava disposto a falar mais nada. Eu levantei um pouco a cabeça e fiquei mirando seus olhos por um tempo, mostrando que eu ainda estava esperando. Ele suspirou tranqüilo. – Como as ondas. – Olhou um pouco para baixo sem saber o que dizer exatamente. – Eu não estou sempre lá, mas eu sempre volto para você.

Ele veria meus olhos faiscarem se não estivéssemos no escuro. Mirei o mar de esmeraldas que estavam bem em minha frente e observei um sorriso sem jeito. Nossos lábios se tocaram com urgência. Ele tinha o melhor beijo que eu já provara. Era a intensidade certa, o movimento certo, delicado e firme ao mesmo tempo.

Meu corpo tremeu quando me lembrei desse beijo. Ontem foi mesmo uma noite memorável. As pessoas estavam animadas na rua, o clima estava ameno e limpo, eu estava com quem queria estar e acho que ontem foi uma das primeiras vezes que saímos de verdade, já que, para mim, ir à pizzaria e à sorveteria para comprar comida e comer em casa não contam como encontros reais.

Apesar de não ter dado qualquer sinal de chuva, alguns pingos finos nos pegaram no meio do caminho quando voltávamos para casa de moto. Sam aproveitou o chuvisco para me beijar assim que parou a moto na entrada do prédio, quando poderia ter ido direto à garagem subterrânea. Eu não fiquei contente pelo cabelo ou pelas roupas molhadas, mas aquele beijo relembrou-me do mês anterior e isso bastou. Sorri feliz ao lembrar desse final de encontro perfeito.

Ouvi o ranger da porta do meu quarto. Uma menina com óculos de lentes profundas e um rabo de cavalo bem arrumado no topo da cabeça me encarou com os olhos sonhadoramente dourados os quais eu achava bastante familiares quando eu me olhava no espelho.

- O que vamos almoçar? – Sofia perguntou diretamente.

Ela estava irritada comigo porque Sarah se cansou de nos esperar no colégio para nos trazer de volta para casa e tivemos que voltar à pé. Eu não tive culpa pelo atraso, Rebecca estava realmente para baixo com toda aquela história do Lean e da recuperação semestral. Ela negava o quanto podia e insistia que estava bem, mas quase inundou o chão do banheiro de lágrimas enquanto gritava “estou legal”. Várias meninas do segundo ano se apressaram a sair assim que ela levantou o tom de voz.

- O que tem no armário?

- Um pote de palmito. – Ela respondeu sem pestanejar e continuou a me fuzilar com aquele olhar de cobrança enquanto se recusava a sequer pisar no meu quarto. Olhei para a cabeça flutuante na porta com uma expressão de terror. – Não adianta fazer essa cara. Isso não vai fazer a comida aparecer magicamente na geladeira.

- Eu achei que você tinha um controle desse tipo de coisa. – Tentei jogar-lhe a culpa sabendo que não iria funcionar.

O fato é que Sarah almoçava e jantava no escritório todos os dias, com exceção dos domingos em que ela jantava conosco. Mesmo assim, ela nem se dava ao trabalho de se aventurar na culinária, no máximo pedia comida chinesa pelo telefone. Isso significava que sobrava para Sofia e eu nos preocuparmos se ainda tínhamos estoque de enlatados e congelados por aqui. Caso contrário, a nossa morte por subnutrição era tão certa quanto dois mais dois são quatro.

- E quem ficou encarregada pelas compras nesse último mês? – Ela me esbofeteou com essas palavras ríspidas. Realmente, se não me falha a memória, era eu que havia reclamado à Sarah que Sofia não deveria mais fazer as compras da casa devido à enorme quantidade de tofu e enlatados de picles e soja que ela estava comprando na tentativa de conseguir todas as vitaminas “B’s” que existem. Na verdade, ela até tinha um controle sobre a quantidade de vitaminas que estava ingerindo e qual a quantidade ideal para uma saúde estável.

- E por que você não me avisou? – Senti meu estômago revirar-se de fome.

- Hum. Isso é algo a se pensar. – Ela disse calmamente e fuzilou-me por trás dos óculos de lentes grossas. – Você disse que precisava de ajuda? Aliás, lembro-me perfeitamente das suas palavras: “Sofia não tem bom senso o bastante para coordenar as compras”. Onde está o seu bom senso, Mellanie? – Disse por fim e bateu a porta do quarto. Fiquei encarando a superfície de madeira lisa por um bom tempo tentando entender se era a Sofie ou eu a filha adotada. Não deveria ser biologicamente possível que fossemos irmãs, não, não mesmo.

Meu estômago avisou-me que eu não tinha muito tempo para ficar enrolando dentro do quarto. Então vasculhei meus pertences até encontrar a minha bolsa, perdida entre dois vestidos curtos e um par de tênis trocados. Não era um problema tão grande assim, refleti comigo mesma. Sarah havia me dado o dinheiro, eu só me esquecera de usá-lo, mas agora eu iria ao mercado mais próximo e compraria o necessário para o nosso almoço e jantar de hoje, amanhã eu faria o resto das compras.

Calcei os primeiros sapatos que pertenciam ao mesmo par que eu fui capaz de encontrar. Sofia já estava me esperando na sala com aquela nuvem negra de irritação sobre a cabeça. Joguei a bolsa em cima da mesa de jantar enquanto me apoiava em uma parede para terminar de encaixar a minha sapatilha no calcanhar.

- O que você está fazendo aí, parada?

- Você acha mesmo que vai fazer isso sozinha? – Ela sorriu com desdém, hoje era o dia. – Não vou permitir que você volte com sacolas cheias de doces e lasanha congelada.

- Eu estou encarregada das compras. – Deixei bem claro e já ia recuperando a minha bolsa em cima do vidro quando ela me interrompeu.

- Você perdeu esse direito quando se esqueceu de comprar. Vamos! – Sofia resmungou enquanto abria a porta do apartamento e marchava para fora com o queixo erguido. Achei melhor não discutir. Eu estava com o dinheiro e poderia comprar o que quisesse, mesmo que tenha que ouvir um sermão de duas horas sobre saúde e alimentação.

Observei, com preocupação, a placa luminosa que mostrava que o elevador estava subindo do térreo ao meu andar. De repente, lembrei-me de que meu aniversário era amanhã, o que significava que, talvez, eu não tivesse muito tempo para fazer qualquer coisa, muito menos compras.

Não precisei manter essa linha de pensamento por muito tempo porque, como se estivesse dentro de um filme de terror, minhas mãos começaram a tremer de repente, meu coração batia descompassado dentro do peito e a sensação de que o chão desapareceria a qualquer instante inundou meu corpo quando as portas do elevador se abriram. Acho que é óbvio dizer que o Sam estava lá, especialmente bonito vestindo uma camisa social de um tom de azul claro e discreto e sapatos de brilho reluzente. O cabelo estava rigorosamente arrumado, diferente daquela rebeldia que exibiam à noite.

28 comentários:

Mayara Alexandre disse...

Ai, que bom que postou!
Estava louquinha pela continuação...

Você deve ter passado por um sufuco,
por causa do que perdeu, né... ]=

Mas, pelo menos deu tudo certo, e você conseguiu continuar...
Bom, parabéns de novo... Tá tudo muito bom, mais que perfeito !

Estou esperando mais uma parte...
BeijãO

by Mayara Alexandre

Ju Fuzetto disse...

Florzinha!!!
Que lindooooooooooooooo, já estou curiosa para ler a outra parte!!!!

Não demora pra postar, por favor!!!!


Adoroooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo

beijo enorme!!!!

Mylena Furtado disse...

Mel,
que bom que você não abandonou, está tão perfeito. E ai, como vai ser o aniversario?
Eles voltaaaaram!
Amei muito, parabens, realmente está a cada dia melhor, se perguntam que capitulo eu prefiro: TODOS!
Você vai conseguir publicar, com certeza, você merece, total!
Beijos, Mylena

Anônimo disse...

adorei eles sao fofos demais juntos esse livro TEM que ser publicado e TEM que virar filme *-*

Anamaria Cruz disse...

Que tenso essa coisa do computador..
Mas que bom que continuou porque eu não sei se aguentaria de tanta curiosidade!

Finalmente. Finalmente! Agora espero que não venha nenhum maluco psicopata para matar a mel e o sam... seria horrivel.

Parabéns pelo capitulo, está ótimo, maravilhoso, perfeito!
Que não demore muito pra postar, por favor, a curiosidade realmente corrói.
Fora que tem aquela tensão toda se os caras vão aparecer na festa para "buscar" a encomenda ou não.

Aaaaaaaaah Inverso é muito bom! É perfeito Lihn!

Karine disse...

Achei lindo esse lance da areia e do mar *-*

Laura disse...

amei demais! adoro o sam quando ele começa a falar as coisas do nada e sempre diz coisas bonitas demais, é um dos melhores livros já escritos e isso é fato!!

laura disse...

ahh e se publicarem é certeza que eu compro!!!

Annya disse...

Gente...Eu amo de paixão esse livro tanto como eu amoo minhas bests(a piranha atirada da Ane,a "maezona" da Deby e a piradinha da Mandinha...Amo vcs d+)!!!!

- Nira. disse...

AAAAAMEEEEEEEEEEEEEEEEEEEI!

janie disse...

o sam é sempre o melhor

Unknown disse...

ah meooo q lindooooo *.* posta maissss!!! =D to ansiosa !!!!

christiny disse...

oiiiiii
ameiiii... ai to tão feliz por eles estarem juntos de novo e super curiosa para saber como vai ser ela convidadno o sam de dia e tb como o sam eo noah vão reagir no niver dela...
amei quando o sam falo no cine "Como as ondas. Eu não estou sempre lá, mas eu sempre volto para você"...
ficou mui lindo msm... estou louca para o INVERSO ser publicadooo...
bjo!!!

Ray disse...

Mais posts, que ótiiiiiiiiiiimo! *-*
Ai meu deus garota, obrigada por ter unido a Mel
e o Sam novamente *0* to começando a gostar da Mel,
já a Sofia...Ah, concordo plenamente com a Rebecca.
Se ele não te quer, ignore-o, eu sem´pre faço isso 8D
/aindabemquesouenjoativacomgarotos,voltaemeiaeugostodedesgosto :x
aksoaksaoksaokoaskoaskoaso
Enfim, maaaaaaaaaaaaaaaaaaais *0*

Ray disse...

Ah, outra coisa. Acho que sei explicar esse sentimento
louco que a Mel tem pelos 2.
Bom, a gente sempre que gpsta de uma pessoa une os pontos
doces e fofos com aqueles tipo...radicais que a gente gosta
nela, não? O amor une o sentimento romantico e carnal.
Com o Sam do dia, ela sente esse sentimento romantico. doce e agradavel. Com o Sam da noite, pelos desejos loucos que ela falou, é algo mais fisico, mais carnal. Aquela vontade que você tem de se agarrar a pessoa e nunca mais se separar, e isso cresce mais porque ela não pode ter isso com o Sam do dia né? Minha opnião :D

Anônimo disse...

AHHHH Ameeeei como sempreee!!!
ta cada vez melhoor, e a ansiedade pra ler só melhorou... kkk

Parabéééns Lihn, sério ta cada vez melhor!
Espero que até o final agora de tudo certo, não ia aguentar esperar mais um mês pra ler o resto....

By: Giih

Thay disse...

AHHHH Ameeeei como sempreee!!!
ta cada vez melhoor, e a ansiedade pra ler só melhorou [2]

Ta mto perfeitoo ..
Estou mto mais curiosa pra saber o resto ..
A história esta viciante .. Realmente mto boa ..
Parabéns Lihn vc escreve mto bem ..
;*

Tati disse...

ameii muito lindo mesmo
Mas kdê a outra parte??
não demora por favor

Anônimo disse...

Lihn vc prometeu postar ateh fim de semana... nem postou =( to ansiosaaa..posta pleaseee *.*

Anônimo disse...

ah que lindo, gostei bastante do cap.
o Sam cada vez mais apaixonante =)

Drika disse...

Adorei!! O Sam e a Mel cada vez mais lindos juntos e, é bom vêr que ele está liberando os seus sentimentos. E a festa de aniversário da Mel está chegando, será que vai ter muitas emoções e aventuras???

Beijosssss!!!!

~ aleexia disse...

Lihn.. cadê vc?! era pra sair esse fds nera?! intãão?

Anônimo disse...

num guento mais esperar Lihn...seja mais profissional...prometa e cumpra! posta a outra parte!

Annya disse...

Eu amooooo esse blog.Amooooooooooooo esse post.
Gente quem tem twitter me add:
www.twitter.com/anny_fofis

Thay disse...

Aiin .. Cade vc Lihn ..
Era pra ser fds semana passado naum ?
1 semana atrasado ..
Ahh mais isso só aumenta a curiosidade ..
Eu amooooo esse blog [2]
;*

Carolina Bezerra disse...

Tem um selinho pra vc no meu blog! http://messylines.blogspot.com/2010/02/crises-nonsense.html

Adoro o seu! ♥ E por falar nisso, kd vc?!? tah sumiida... a gente ñ aguenta mais esperar! adoramos as suas histórias. bjs!

Anônimo disse...

ai que triste que é entrar aqui e não ver post novo u_u
mas tudo bem,eu vou entrar com menos frequencia mas com certeza virei...afinal agora eu quero saber o fim da historia né...

Vanessa disse...

aaaaaaaaaah tá acabando D:

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