sábado, 13 de novembro de 2010

Capítulo 13 - Fim (Parte 2)

- Sai daí! – Aproximei-me com cautela e medo do que ela poderia fazer.

- Larga isso! – Retrucou ainda mais ameaçadora, ainda revezando o olhar entre o martelo e a rua.

Se alguém entrasse pela porta àquele instante iria se deparar com a cena de uma irmã mais velha empunhando um martelo de bife em direção da mais nova e esta, por sua vez, numa posição em que desentendidos da situação pensariam que ela estava prestes a se jogar da sacada. O próximo passo seria chamar o hospício para as duas.

- Sofie, não faça nenhuma bobagem. – Tentei acalmar a voz antes que ela fizesse realmente o que estava pretendendo: arremessar a caixa na avenida lotada de carros que a deixariam em pedaços, caso eu não soltasse o martelo.

- Você é que está sendo insensata! Você não vai martelar essa coisa! O papai a deixou para você cuidar dela e não destruí-la! – Foi a primeira vez que eu a ouvi falar “papai” ou qualquer coisa equivalente. A história da encomenda deve ter remexido bem lá no fundo, nos sentimentos que muitos julgavam inexistentes.

- Ah claro. – Sorri com desdém. – Porque jogar a encomenda lá embaixo não vai deixá-la destruída. – Avancei alguns passos calmamente. Eu já estava próxima ao sofá vermelho no meio da sala de estar. Logo eu poderia alcançá-la se eu agisse com rapidez.

- Solta esse martelo. – Ela insistiu mais uma vez com a voz firme, mas eu percebi que suas mãos estavam trêmulas tocando o metal da sacada. Estava muito hesitante para alguém que estava prestes a destruir a minha herança. – Ou eu vou fazer a sua caixa voar.

- Não, não vai. – Retruquei seguramente e ela piscou os olhos, confusa. Meu Deus, como ela era ruim para fazer chantagem. Todos os anos de exclusão social a tornaram uma pessoa que não consegue nem ao menos mentir sem tremer o corpo todo. Agora, eu tinha a certeza de que ela não iria fazer isso.

Meus pés tocaram, com cautela, o chão logo atrás do sofá. Sofie desviou os olhos para o meu pé, então para o martelo, depois para a sacada. Era visível o seu desespero. Ela não tinha escolha, teria que me dar a maldita caixa para que eu, com todo o deleite possível, pudesse finalmente abrir aquela coisa. Na minha imaginação, esse momento seria agraciado com uma luz divina angelical e um coro de pássaros migratórios ao amanhecer. Improvável, mas seria igualmente muito bom.

Sofia era a minha irmã. Era natural que sentisse ciúmes de um presente que o papai deixara a mim, mas isso não a colocava no direito de arrancá-lo de minhas mãos daquela maneira. Quero dizer, provavelmente não foi assim que o meu pai imaginara a sua herança sendo aberta, mas é como dizem: “quem não tem cão...”

Tudo bem, talvez eu não estivesse pensando e nem agindo com clareza, mas quem poderia me culpar por ceder à ansiedade e à curiosidade? Não tenho culpa de ter recebido uma fechadura sem chave. Seria a mesma coisa de terem me dado um carro sem pneus, uma luminária sem a lâmpada. O que eu supostamente deveria fazer com uma caixa que não pode ser aberta? Digo, quem foi mesmo que disse que “os fins justificam os meios”? Eu nunca havia entendido essa frase... Até aquele momento. Martelando a caixa ou usando a chave, o que importa é que ela seria aberta, não é mesmo? Ou talvez não.

Sofia continuou a me encarar com os grandes olhos castanhos arregalados. Deveria ter ficado ali por quase um minuto enquanto eu travava um monólogo na minha cabeça. “Martelar ou não martelar? Eis a questão.” Minhas meias brancas deslizaram sobre o chão mais uma vez e agora eu já estava quase no alcance da criatura de um metro e meio mais excêntrica que eu já conheci. Mais de seus cabelos estavam, agora, soltos do coque e balançavam com o vento. O robe prateado também era iluminado pela luz do sol da manhã de domingo mais tranqüila em algumas semanas.

Os olhos atentos se estreitaram e passaram a me observar com cuidado enquanto eu me movia, vagarosamente, em sua direção. De repente, passaram a encarar outra coisa que não eram meus pés, nem o martelo, nem a sacada, mas sim o corredor. Antes que eu pudesse perceber esse leve movimento, seu corpo já estava voando pelo corredor acompanhado pelas pontas do robe. Minhas meias derraparam no assoalho e fizeram o sentido da meia-volta.

Sofie não era atlética. Eu, pelo menos, fingia fazer alguma coisa nas aulas de educação-física do colégio para não parecer totalmente inútil, mesmo que fosse ficar correndo para lá e para cá enquanto as pessoas com reais habilidades esportivas pudessem jogar sem serem interferidas. Portanto, desatei a correr pelo corredor. Minhas pernas sentiam o baque dos passos rápidos no chão e os músculos deram aquela sensação de ardência. Além da vantagem de ser um por cento mais esportiva que a minha irmã, eu ainda estava vestida com o short do pijama, isto é, sem nenhum robe longo para atrapalhar a minha corrida.

O tamanho esforço que eu colocara em cima do meu corpo durante tão pouco tempo me fez arfar enquanto continuava a perseguição. Eu sabia o plano dela. Ela iria entrar no próprio quarto e trancar a porta, o que me deixaria sem saída. A não ser que eu martelasse a porta de madeira fina e a deixasse em pedaços como nos filmes de terror, mas eu acho que isso não era, realmente, uma opção. Eu deveria checar se vendem machadinhas no Mercado Livre.

Continuamos a correr pelo corredor estreito enquanto a distância entre nós duas diminuía. Na minha mente, parecíamos um Leão faminto perseguindo uma gazela no meio da savana. E o leão seria o vencedor. Sofie já conseguia tocar as pontas dos dedos finos na maçaneta da própria porta quando eu alcancei uma das extremidades do robe e a puxei na direção contrária.

Minha irmã escorregou no assoalho com a brusca freada induzida. O peso dela fez com que eu também me desequilibrasse na velocidade em que estávamos. Caímos juntas sobre o chão do apartamento e eu tive a ligeira sensação de que este tremera. Talvez Rebecca estivesse um pouco certa acerca do regime.

Sofie despencou com os braços protegendo a caixa do impacto, meu martelo voou na direção da sala de estar e logo, igualmente, atingiu o chão. Foi uma real sorte o fato de ele não ter caído em cima de qualquer uma de nós duas. Eu não queria quebrar o pé de novo. Mas falando em ferimentos, senti a dor produzida quando o chão ralou a coxa na qual me apoiei na queda.

- Ai! – Resmunguei enquanto amparava meu cotovelo esquerdo com a mão direita. Centésimos de segundos antes, eu sentira, também, um choque naquela região.
Percebi que a criatura anã e descabelada caída ao meu lado fizera menção de se levantar. Agarrei sua panturrilha firmemente para que não pudesse se mover. Ela não poderia escapar. Estava acabado.

- Me solta, Mellanie! – Sofia realmente achava que a pronúncia total do meu nome me intimidava. – Me solta já! Eu não gosto de contato! – Gritou.

- Me dá o que é meu! – Bradei em resposta. Ela não tinha condição de dar ordens ali.

- Não! – Berrou como se quisesse chamar a atenção de todos os vizinhos do prédio. Aliás, talvez fosse essa a intenção.

Ela, ainda presa no chão, esticou o braço o máximo que pôde na direção contrária para que eu não colocasse as mãos na caixa. Eu subi em cima dela com cuidado e me estiquei para alcançar. Meus dedos estendidos não tocavam a superfície de madeira por questão de centímetros.

- Sai de cima de mim, sua eqüina! – Fez escândalo de novo quando eu sabia que eu não a estava machucando.

Eu só queria que ela me devolvesse o que era meu. Além do mais, eu parecia mais é que estava lhe dando um abraço no chão enquanto ela mexia o único braço livre para cá e para lá de forma que eu não conseguia tirar a caixa de suas mãos. Eu tentava usar, também, o meu único braço que não estava ocupado imobilizando a Sofie para tentar agarrar a encomenda, mas essa pequena criatura irritante fazia questão de dificultar as coisas.

- Me solta! – Ela choramingou enquanto ainda desvencilhava o seu braço do meu. – Eu não gosto de contato humano, me solta!

- Larga a minha caixa que eu te solto!

Eu percebi que ela estava cogitando essa idéia. Sofie detestava qualquer coisa que envolvesse contato, incluindo esportes, abraços, beijos, brincadeiras de roda e atividades do tipo. Se ela pudesse, tenho certeza que demarcaria uma linha de amarelo neon ao redor de si mesma com o aviso “não ultrapasse”. Por esse mesmo motivo, apertei o abraço que estava lhe dando. Logo ela estaria sufocada com outra pessoa tão perto por tanto tempo. O calor humano de um abraço, o cheiro outrem, a proximidade fraternal entre nós duas, isso seria insuportável para ela em alguns segundos. Era a primeira vez em muitos anos que eu abraçava a minha irmã.

- Sai! – Disse mais uma vez, inutilmente. Sua voz de choro era notável e a expressão de ódio e desespero eram o indicador de que ela não mais suportaria. Apesar de tudo, continuava balançando a caixa, que fugia dos meus dedos esticados.

- Solta!

- Eu solto! – Finalmente se rendeu e eu sorri triunfante. Resolvi parar de torturá-la e descomprimi o abraço, mas com cautela para que ela não tentasse fugir de novo, estando nós duas tão próximas da porta de seu quarto. Ela ainda desviou a caixa da minha mão por algum tempo, mas logo estendeu o braço na minha direção.

Eu a desprendi mais um pouco enquanto esticava a minha mão para pegar a minha herança que, desta vez, era um alvo fixo. Sofie hesitou novamente e puxou a caixa para si. Eu a apertei de novo.

- Você disse que ia me devolver! – Falei com a raiva espumando pelo meu cérebro. Ninguém agüenta ser feita de boba por tanto tempo. Essa encomenda já estava me saindo uma jornada maior que a prometida.

- Mel... – Sofia falou com a voz bem séria e eu parei de me mexer.
Ela deveria ter notado alguma coisa. Meu corpo tremeu de medo, será que estragamos a caixa na queda? Sofie só usava esse tom de voz quando havia algum problema que não havíamos cogitado antes. - Escuta. – Ela sentou-se no chão diante de mim e posicionou o ouvido em frente à caixa. Arregalou os olhos e colocou o dedo indicador da outra mão sobre os lábios, indicando silêncio.

Aquele tempo todo balançando a caixa entre os dedos deveria tê-la feito ouvir algo que eu não percebi antes. E, pela sua expressão facial, deveria ser algo crucial para a resolução do novo problema.

Soltei-a e também me sentei sobre o chão. Eu não estava escutando nada. Minhas sobrancelhas se levantaram quando eu me aproximei para tentar escutar o que eu não havia escutado. Quando meus ouvidos chegaram tão próximos como quase tocando a madeira, eu finalmente ouvi.

Era um som mínimo. Qualquer pessoa mais desatenta nunca o teria percebido e teria pisoteado, batido ou até martelado a caixa e nunca saberia o que dera errado. Eu estremeci pensando na tamanha sorte de Sofia ter ficado na posição de mexer a caixa para lá e para cá, como ninguém jamais teria feito. Quero dizer, que tipo de pessoa recebe uma encomenda e a fica balançando de um lado para o outro feito um iogurte “agite antes de beber”? Eu, certamente, não.

Meus ouvidos captaram o som breve de um líquido se movendo no interior da caixa. Parecia uma torneira do banheiro levemente aberta. Aquele barulho mínimo de água, ou sabe-se lá o quê, se chocando contra a caixa. Aquele barulho mínimo que eu nunca teria notado.

- Á-água? – Gaguejei quase sem respirar pela surpresa. – A caixa está cheia de água?

- Obviamente não. – Sofia suspirou como se tivesse que me explicar tudo, mas eu realmente não estava entendendo. Por que alguém colocaria água dentro da minha herança? – Isso é mecanismo de defesa.

- Como assim?

- Não deve ser água. – Ela concluiu agitando, com cuidado, a caixa mais uma vez. – Provavelmente, é alguma outra substância, ácido, talvez. Algo que danifique o há lá dentro caso você tente abrir a caixa de qualquer outra forma que não seja com a chave.

- Quer dizer... – Eu ainda estava exasperada pelo susto. Minha irmã, mais uma vez, deveria estar certa. – Que se eu tentasse martelar isso...

- Sim, o material frágil que, provavelmente, está prendendo o líquido seria quebrado e a encomenda seria destruída.

Eu é que estava destruída. Sentei-me no chão frio sentindo vontade de chorar até que o dia acabasse. Por que nada para mim pode ser tão simples quanto somar um mais um? Por que tudo tem que fazer parte de um quebra-cabeça imenso e complicado que eu não tinha condições de desvendar? No que diabos eu havia me metido?

- Você está pálida. – Sofia observou recuperando-se da dose de calor humano a qual eu a submetera. Ela já havia se afastado de mim quase quarenta centímetros enquanto eu estive calada tentando não abrir um berreiro.

- Por que você acha? – Respondi rispidamente mesmo sabendo que a minha irritação não tinha nada a ver com a minha irmã.

- Veja bem. – Ela suspirou enquanto tentava pensar em algum meio de me acalmar. Eu sabia que ela não tinha prática social o bastante para isso. – Essa descoberta nos mostra um aspecto muito importante.

- Que eu não posso martelar essa droga? – Sibilei enquanto tentava controlar o meu instinto raivoso que queria tacar a caixa na parede. Se eu fizesse isso, pelo menos tudo estaria acabado. Era só eu enviar os destroços dela pra alguém através do correio e eles veriam que eu não a tenho mais e parariam de me encher o saco.

- Também. Mas o que eu acredito que há de maior relevância acerca disso tudo é: o que quer que Daniel tenha deixado a você – e me incomoda o fato de ela não chamá-lo de “papai” – não foi apenas um porta-retrato antigo ou uma meia de família. É algo de extrema importância e, acima de tudo, bem protegido.

- Vamos jogar essa caixa lá em baixo e acabar logo com isso. – Respondi sem um pingo de paciência. Todas essas situações esquisitas estavam me irritando. Em três meses, a minha vida tinha mudado drasticamente de uma forma que eu só imaginei possível se existissem outros universos paralelos com várias réplicas de mim mesma. Quero dizer, às vezes eu nem sabia se estava acordada ou se estava dentro de um pesadelo causado pelo meu subconsciente perverso. Aliás, eu não ficaria surpresa se entrasse algum palhaço montado em um elefante e soprando fogo pela boca no meu apartamento nesse exato momento. Tudo bem, talvez um pouco de exagero.

- Vamos ter paciência. – Sofie levantou-se em um pulo enquanto segurava a caixa cuidadosamente com uma das mãos.

- Onde estará a maldita chave? – Resmunguei tentando driblar a tontura e postar-me de pé no chão. – Não lhe parece um pouquinho – e fui completamente irônica nessa última palavra – esquisito que alguém lhe deixe uma herança sem chave com propriedades auto-destrutivas e que só pode ser aberta com a chave? Parece um daqueles jogos mentais de filmes de terror ou aquelas brincadeiras infantis de caça ao tesouro. Será que vou passar a receber cartas anônimas semanais contendo pistas?

- Pare de delirar. – Sofia mandou rispidamente acabando com o único fiapo de diversão e ironia que eu pude achar no meio de toda aquela situação. – É no mínimo exótica essa mania de enviar um presente quase do além que não pode ser aberto, no entanto, pode ser que não estejamos atentas a todas as possibilidades.

- O que quer dizer?

- Veja bem, você recebeu a encomenda em um banco não dominado por robôs. Ainda.

Eu não sabia se ficava confusa ou horrorizada com a notícia de que a minha irmã depositava sérias crenças num futuro golpe cibernético contra a raça humana. Mas eu não poderia me preocupar com isso no momento.

- Seque a primeira possibilidade.

- Está sugerindo que podem ter cometido um erro?

Ela assentiu com a cabeça.

- Nem todos os homo sapiens sapiens, diferentes de mim, são tão precisos e atenciosos no que fazem. É por isso que não se pode confiar em certos pseudo-gênios de cabelos cacheados e alvos para que façam uma parcela insignificante de pesquisa porque, é claro, eles estão destinados a pegar caxumba antes de atestar a total falta de aptidão para a ciência e fracasso perante o próprio telencéfalo pouco desenvolvido.

- Quando esse assunto virou o Noah? – Levantei as sobrancelhas tentando entender o que ela havia dito em impressionante velocidade.

- Não pronuncie esse nome diante dos meus ouvidos, por favor.

- Certo, voltando ao que interessa... – Tentei distrair nós duas da palavra “Noah”. Não posso negar que eu também sentia leve desapontamento quando eu o mentalizava. Quero dizer, não dá pra ignorar alguém que me apoiou totalmente quando eu estava de coração partido e, por algum motivo, eu estava fugindo dos meus amigos mais antigos. Alguém que me levou pra sair e ver, ao vivo, o cover de uma das minhas bandas favoritas, que quis me levar a um jantar de gala e não ficou nem um pouquinho arrasado por eu não ter lhe dado, durante a noite toda, a devida atenção que merecia. E ele se preocupou comigo, quis me ver bem e me fez pensar que éramos amigos, mas ele simplesmente foi incapaz de responder qualquer uma das milhões de mensagens que eu deixara em sua caixa postal do celular ou de enviar sequer um sms de feliz aniversário. E o pior: nem me contara que estava doente. Que tipo de amigo esconde isso do outro? Talvez não quisesse me preocupar, tudo bem, mas por que desaparecera? Isso sim me deixava intensamente decepcionada.

- Mel?

- Sim? – Respondi percebendo que eu havia ficado calada durante tempo demais.

- Você vai ligar lá?

- Pra perguntar se eles se esqueceram de me entregar alguma parte da herança? – Custei a me situar.

- Obviamente. – Ela concluiu com aquele tom de voz que eu não gosto.

Procurei na minha bolsa o papel que garantia o recebimento da encomenda. Lá eu deveria encontrar, mais rapidamente, o número do telefone da agência. O papel estava um pouco amassado na extremidade superior visto que a moça do caixa havia recortado, logo acima desse pedaço, outro papel no qual eu assinava atestando a entrega. Mesmo com esse amassado, era possível ler claramente o número do banco. Disquei o que era indicado e esperei, pacientemente, que uma gravação me falasse todas as minhas opções e qual tecla eu deveria digitar para falar diretamente com o atendimento ao consumidor.

- Bom dia, meu nome é Mellanie Grizzo e...

- Bom dia, senhorita Grizzo. – Escutei uma voz fina e clichê de atendimento ao consumidor do outro lado da linha. A mulher fazia a questão de pronunciar as palavras claras e corretas, talvez tentando me irritar, talvez porque fosse a política do local. – Antes de estarmos conversando, eu gostaria de estar avisando a senhorita que essa conversa está sendo gravada e que pode ser usada contra a senhorita, caso haja alguma conduta contra a lei, correto?

- Sim... Olha, eu só queria... Bom, eu busquei aí, ontem pela manhã, uma caixa que o meu pai deixou pra mim e...

- A senhorita poderia me informar, por favor, o seu RG, CPF e número do protocolo?

Sentei-me na minha cama enquanto vasculhava o resto da bolsa procurando pelos meus documentos. Tentei ignorar a mania irritante que a moça tinha de me interromper, eu tinha assuntos mais importantes a tratar no momento.

- A senhorita confirma que todas as informações são legítimas e corretas, correto?

- Sim. – Eu respondi enquanto ouvia alguém apertando teclas de computador com muita força do outro lado da ligação.

- Bom, realmente, no sistema consta que houve a retirada de uma encomenda no dia de ontem durante a parte da manhã e que foi deixada pelo senhor Daniel Grizzo.

- Era o eu estava tentando dizer... – Expliquei ainda tentando me controlar. – Eu tenho fortes suspeitas de que o conteúdo não me foi entregue por inteiro. Será que é possível checar se não houve algum erro?

- A senhorita pode esperar um minuto?

- Certo.

Esperei cerca de vinte minutos enquanto ouvia uma musiquinha irritante e um balbuciar de vozes no fundo.

- Senhorita Grizzo?

- Sim?

- Parece que realmente houve um engano. Nós pedimos sinceras desculpas e...

- Quando posso ir buscar? – Eu não estava interessada em desculpas. Não que eu estivesse nervosa pelo erro ou alguma coisa do tipo, mas é que o importante é que eles ainda possuíam a parte que faltava da minha herança.

- Bom, como hoje é domingo, fechamos ao meio-dia.

Engoli em seco. Como eu iria lá com o Sam se eles fechavam ao meio-dia? Ele iria dar a louca se eu fizesse isso de novo. Não que ele estivesse sequer falando comigo, aliás.

- E-e segunda-feira? – Perguntei gaguejando. A verdade é que eu não queria adiar nem mais um dia a abertura da minha preciosa caixa. Acho que eu estava ficando quase tão viciada nela quanto as pessoas que queriam me matar.

- Terça é feriado. – Ela respondeu como se estivesse falando o óbvio. – Faremos segunda como um recesso, por isso avisamos todos os clientes que tinham pendências nesse dia para que viessem na quarta.

- Terça é feriado? – Repeti incrédula e ri solitária. – Desde quando terça é feriado?

- Senhorita Grizzo... – A atendente resmungou em tom de súplica como se não fosse a culpa dela. Claro que era culpa dela. Aliás, era culpa de todos da nação. Por que colocaram um feriado justo na terça? Tenho certeza que a atendente já deveria ter comprado todos os ingredientes necessários para um churrasco. Um churrasco! Inaceitável.

Meu mundo caiu. O que eu iria fazer agora? Esperar até quarta? Quarta-feira eu já nem mais teria unhas. Eu precisava abrir essa droga. Não mandei ninguém morto há sei lá quantos anos me enviar uma herança misteriosa. Minha curiosidade já estava incontrolável àquela altura, eu não podia esperar.

Mas e o Sam? Bom, ele já não estava falando comigo pelo mesmo motivo, certo? Não poderia ficar pior do que a discussão de ontem, poderia? Se eu estivesse criando um novo motivo para a briga, eu até ficaria preocupada... Mas quem fica bravo de novo por algo que já está bravo? Além do mais, ele tinha que entender que a minha sede pela caixa era algo que estava me consumindo.

Depois de anos sem sequer tocarmos o nome do meu pai à mesa de jantar, ele havia se lembrado de mim antes de morrer. A falta que ele me fazia era como um aspirador de pó dentro de mim, ia sugando todas as minhas entranhas, meus órgãos, meu ser. E doía. Doía e deixava um vazio, como uma peça que faltava em um quebra-cabeça. Definitivamente, eu não poderia esperar.

- Vou dar um jeito de aparecer aí ainda hoje. – Respondi perguntando se eu me arrependeria disso mais tarde quando o Sam soubesse.

- Perfeitamente. – Ela disse do outro lado da linha tentando ser compreensiva com a minha surtada básica. – A senhorita deve trazer todos os documentos requeridos no início da nossa conversa e a parte da encomenda que lhe foi entregue.

- Por que eu não posso ir simplesmente aí e pegar o que falta?

- É o protocolo da empresa nesse caso.

- Certo. – Falei com insegurança.

- Bom, então aguardamos a sua visita. Tenha um bom dia!

- Bom dia.

Joguei-me de costas na minha cama. Teria eu feito a melhor escolha? E essa história de ter que levar a caixa para receber a chave? Qual a finalidade disso? Conferir se fui eu mesma que recebi a outra parte da encomenda? No meu caso, isso não seria ainda mais perigoso? Muitas perguntas que poderiam ser respondidas com “não sei”. E essa resposta não me ajudava em nada.

- Sofia?

- O que eles disseram sobre a encomenda? –Disse quase gritando, já que estava em outro cômodo.

- Quantas horas? – Perguntei preocupada.

- Pouco mais de dez e meia. Por quê? – Ela apareceu na porta do quarto, se recusando a avançar um centímetro a mais.

Levantei-me em um salto e comecei a trocar de roupa enquanto observava o horizonte que estava escuro e suspeito. Minha irmã fechou os olhos, por algum motivo, ela detestava pessoas semi-nuas, mas eu não me importei. Teria que tirar o meu pijama logo e sair de casa ligeiramente se quisesse chegar lá a tempo.

- O que você está fazendo? – Ela perguntou ofendida e de olhos vendados pelas mãos enquanto eu já terminava de abotoar a minha calça jeans.

- Pode abrir. – E isso a fez abrir os olhos lentamente, com insegurança. Mas não havia mais “perigo”, só faltava amarrar o tênis e pegar uma jaqueta de frio caso chovesse.

- Aonde você vai?

- Tenho que ir lá pegar a chave, Sofie. – Respondi em tom de súplica esperando que, pelo menos alguém, me compreendesse.

- Eles disseram que tinham a chave?!? – Arregalou os olhos surpresa.

- Não exatamente... – Revirei os olhos ao mesmo tempo em que enfiava o outro tênis no outro pé. – Mas a moça disse que havia um engano e que, realmente, tinha uma parte faltando. O que mais pode ser?

Ela não respondeu. Sabia que eu estava com a razão e, no fundo, eu acho que ela estava com a mesma expectativa que eu. Ou quase isso. Tenho certeza que se eu explicasse direitinho ao Sam como eu estava me sentindo, ele poderia entender porque eu fiz isso. Afinal de contas, ele é o meu namorado. Isso significa que ele deve me apoiar, certo?

Sofia repousou os olhos na minha sacada. As nuvens escuras se mexiam lá fora com rapidez e o vento, bom, o vento estava quase arrancando as folhas das palmeiras que foram plantadas lá embaixo. Apesar de ainda estar de manhã, o sol estava escondido, quase um coadjuvante na peça da tempestade.

- Vai chover. Você não pode ir amanhã?

- O lugar vai estar fechado. – Respondi escolhendo uma jaqueta que pudesse agüentar a chuva que estava por vir. Peguei uma em tom marfim que tinha uma espécie de cinto preto à altura da cintura. Essa era legal, eu não ficava parecendo gorda.

- Eles vão fechar pelo feriado?

- Por que ninguém me avisou desse feriado?

- É local.

Isso não justificava nada.

Peguei a minha encomenda que logo seria aberta e a enfiei dentro da minha mochila. Ninguém sequer desconfiaria de nada. Saí do quarto e entrei na sala ainda colocando as alças da mochila sobre as minhas costas enquanto Sofie me seguia como um rastro de gosma segue a lesma. Não que a minha irmã fosse uma gosma, enfim.

- Acho que você não deveria ir.

- Por que não? – Eu perguntei dando uma de idiota sabendo que a resposta era óbvia. Esse plano tinha tudo para dar errado, mas que alternativa eu tinha?

- Você sabe o porquê. – Respondeu ainda me seguindo ao mesmo tempo em que eu procurava a minha chave. – O Sam, apesar de ser um humanóide que combina mais músculo estriado esquelético do que massa encefálica... Ele tem ligeira razão sobre essa questão. Por que não o chama pra ir com você?

- Hum... – Lembrei-me repentinamente que Sofia não sabia muito sobre “probleminha” que ele tem. – Ele trabalha durante o dia.

- Inclusive aos domingos? – Ela estranhou.

- Sim, ele é músico. Essa coisa de folgar aos domingos não existe pra ele.
Ela não acreditou muito bem nessa história, mas eu não estava nem um pouco preocupada. Não que eu não me preocupasse com os problemas psiquiátricos do meu semi-namorado, mas eu não estava nem aí se a Sofia descobrisse. Não é como se ela tivesse alguém para contar o segredo, de qualquer forma.

- Vou indo. Se ele aparecer, diga que eu fui buscar o restante da encomenda e que, quando chegar, eu explico tudo. – Eu disse para disfarçar. Quero dizer, eu sabia que ele não apareceria no meu apartamento durante o dia.

Olhei no meu relógio de pulso e já eram quase onze horas. Isso significava que eu tinha que ser muito rápida, visto que eu ainda teria que pegar o ônibus, andar alguns metros para chegar no local e toda essa romaria que eu já fizera quando fui lá na primeira vez.

Entrei no elevador apressada quando ouvi um barulho de patas e um cachorro lindo, enorme e branco latindo pra mim. Tosha estava preso a uma coleira que, por sua vez, estava presa a uma mão que estava presa à pessoa mais bonita da face da terra. Pelo menos no meu mundinho. Ele latiu pra mim. O cachorro, não o Sam.

- Mel!

- Oi Sam... – Sorri amarelo pensando no quanto eu queria sumir. Além de estar fazendo exatamente o que o meu namorado não queria que eu fizesse, ainda fui pega pela outra pessoa que divide o corpo com ele.

- Feliz aniversário! – Ele disse animadamente e me deu um abraço. De repente, eu não queria mais sumir. Era esse o efeito que ele tinha sobre mim, a sensação de que tudo ficaria bem. Mesmo quando eu sabia que não ficaria.

- Obrigada. – Eu falei enquanto me deixava levar pelos braços fortes que me apertavam as costas e o cheiro maravilhoso que entrava pelas minhas narinas. Nem mesmo isso diminuiu a minha sensação de culpa. Tosha cheirou a minha coxa por um tempo e logo se pôs quase de pé, apoiando as patas na minha cintura, atrapalhando o abraço.

- Tosha, deixa a Mel. – Sam falou tentando parecer bravo, mas essa outra personalidade era tão doce que o cachorro apenas olhou pra ele e abanou o rabo.

- Tudo bem. – Respondi passando a mão em sua cabeça branca, observando seus olhos acinzentados. Ele sentiu-se satisfeito comigo e balançou o rabo outra vez enquanto o elevador se movia para baixo.

- Vou sair com ele um pouquinho. – Ele comentou sorrindo com ternura.

- É bom mesmo. Imagino que deve ser difícil para os cachorros, quero dizer, por ficarem no apartamento a maior parte do dia.

- É... – Ele respondeu passando a mão no cabelo e ficando bastante corado. Era um fofo. – Escuta... Eu não pude aparecer na sua casa ontem, não sei o que houve. Acho que eu estava muito cansado e acabei pegando no sono.

O elevador apitou quando chegou ao térreo, mas Sam não se moveu. Pelo contrário, apertou o botão que mantinha a porta fechada. Eu olhei diretamente em seus olhos cor de oliva pensando no quanto eu era uma péssima namorada. E ele nem sabia disso, nem sabia sequer que eu era namorada, para começo de conversa.

- O que eu queria dizer é que... Bom – sorriu desajeitado de um jeito que me fez querer virar pó e cair no chão de culpa – eu fiz uma coisa para você. Um presente.
Eu me concentrei pra não ficar com a boca aberta. Ou pra não chorar. Digo, enquanto eu estava por aí me arriscando de um jeito que eu sabia que ele não queria e fazendo isso, não só uma vez, mas duas, ele estava me dando estrelas e fazendo outro presente que eu nem sabia o que era, mas tinha certeza que eu iria adorar. E que iria ser perfeito. E ele mal sabia que estava chateado comigo por um erro que eu estava prestes a repetir.

- Você... Você está bem? – Ele perguntou parecendo muito preocupado com a minha reação. Eu subi os olhos para observar a mim mesma no espelho do elevador e percebi que eu parecia ser feita de cera. – Você está pálida. O que houve? Eu disse algo errado?

- Não, não... Imagina. – Eu pisquei os olhos e percebi que o meu coração estava batendo de novo, mas de um jeito muito estranho. Como se a culpa fosse um ácido me consumindo por dentro.

- Bom, eu imaginei que te encontraria por aí cedo ou tarde, então... – Ele soltou Tosha por um segundo, que parecia aflito por estar dentro de um cubículo por tanto tempo, e soltou uma alça da própria mochila nas costas enquanto ainda segurava o botão do elevador. Com essa mesma mão, ele procurou algum objeto lá dentro. – Se você achar bobo ou não gostar, pode me dizer... Tudo bem.

- Sam...

- É que eu procurei algo para comprar, mas nada me parecia bom, sei lá... Então eu fiz isso. – Ele finalmente encontrou o que estava procurando e me entregou uma caixinha de cd. Seu rosto incrivelmente bonito estava ainda mais vermelho. Era igualmente incrível o quanto ele parecia doce e tímido agora. Seus olhos claros faziam se arqueavam em um sorriso bondoso e toda a área ao redor do nariz fino e proporcional estava avermelhada. Era um fofo, daquele tipo que dá vontade de abraçar e nunca mais soltar.

Segurei a caixinha de cd que ele me entregava e percebi que ele mesmo havia desenhado a capa. Nela, havia uma caricatura minha de um jeito super fofo, com umas notas musicais e um violoncelo ao fundo, uma flor no meu cabelo, tudo realmente bem desenhado com lápis preto. O papel que ele usara era um tom de salmão, então ficou visualmente bonito. Na capa, ele havia escrito “Mel” com uma caligrafia perfeita, quase desenhada também e a palavra “Songs” vinha lá embaixo, quase no rodapé.
Sam ficou observando a minha reação ao presente enquanto ainda apertava o botão que fechava as portas do elevador. Uma coisa é certa, esse prédio tem outro elevador, qual o problema se a gente ocupar esse por um instante?

Virei o cd e vi que ele havia escrito, na capa de trás, as músicas que o compunham. Muitas eu conhecia e realmente gostava – como ele sabia disso? – as outras, eu ainda não conhecia, mas fiquei curiosa. A última música do cd se chamava “Mel” e eu fiquei imaginando que música seria essa.

- Eu sei que é bobo. – Ele disse sem jeito e olhando para o chão em que Tosha estava deitado. – Eu só copiei dos meus CDs algumas músicas que eu achava que você poderia gostar, que se pareciam com você. A música do fim é aquela que eu toquei pra você um dia no meu apartamento, meses atrás. A May gostou dela, disse que a gente poderia gravar no estúdio e tudo o mais.

Eu não tinha palavras. Fiquei observando aquilo tudo em silêncio. Eu jamais poderia imaginar que alguém poderia ser tão perfeito. E eu não estou falando só desse Sam, mas dos dois. Que, na verdade, são a mesma pessoa por quem o meu coração quase saltava pra fora só com um olhar. Claro que ele tinha defeitos, como todo mundo, mas era incrível como tudo para mim parecia certo quando ele estava presente. Assim como o Lean parecia perfeito aos olhos da Rebecca, o Sam era perfeito... Para mim.

- Você está calada...

Eu tinha percebido que eu havia passado tempo demais sem falar uma palavra, mas o que eu iria dizer? Aliás, eu queria dizer muitas coisas, mas eu não podia. Como eu iria lhe explicar? Como diria a ele que eu o tenho tido por muito tempo sem que ele soubesse? Que ele se encontra comigo quase todas as noites, que já teve o plano de me matar, que se mudou a esse prédio por minha causa sem nem estar ciente disso? Isso parece loucura. Isso é loucura.

- É que eu... Eu... – Olhei para o chão querendo chorar de culpa, de desespero, de sei lá mais o quê eu estava sentindo. Além de mentir pra essa personalidade, eu também estava mentindo pra outra, já que eu iria lá receber o resto da minha herança.

- Você achou ridículo, não é? – Ele riu de si mesmo e parecia um pouco desapontado. Eu estava sem reação, mas agora que eu havia notado que, a ele, isso parecia ruim. Ele havia se preocupado com o que iria me dar e eu, simplesmente, não sabia falar nada. Nada.

Eu não sabia o que fazer. Eu só sabia me sentir um lixo e desejar sumir por ser tão péssima e mentirosa a uma pessoa que só me faz coisas fofas e que só me salva de tudo. Tanto espiritual quanto fisicamente. Porque, vamos admitir, eu sou um pequeno potinho de encrenca. Uma verdadeira bagunça. E eu me sinto bem quando estou perto dele, qualquer que seja a personalidade dominante. Nesse caso, meus problemas parecem sumir e meu emocional parece estar confortado em um porto-seguro. Sem contar as vezes que ele já me salvou literalmente, tipo quando atiraram no Sr. Felix, ou quando me quase me seqüestraram quando eu ia buscar a Sofie. Ele sempre estava ali por mim, de um jeito ou de outro, e o que eu fazia? Mentia.

Senti o meu peito arder de culpa. Levantei a cabeça e olhei diretamente nos olhos dele, que agora pareciam tristes e decepcionados, talvez até com vergonha por ter pensado em me dar um presente assim. Ele mal sabia que eu tinha achado maravilhoso e que, se estava sem palavras, é porque o gesto havia me tocado.

Seus olhos pareciam mais claros e brilhantes que o habitual, os cabelos negros não pareciam mais tão rebeldes quando o outro Sam gostava que estivessem. Agora, eles estavam perfeitamente arrumados e penteados de um jeito meio conservador. A vermelhidão das bochechas havia diminuído, a desilusão com a minha reação parecia ter substituído o sentimento de vergonha. Os lábios firmes e carnudos, mas não muito volumosos, estavam fechados em uma expressão serena, que tentava disfarçar o desapontamento. Fiquei observando essa expressão por algum tempo, ainda calada, meio hipnotizada e surpresa por ter percebido o quanto eu gostava dele. E era muito mais do que eu, talvez, imaginasse.

- Olha... – Ele disse finalmente, se cansando do meu silêncio e, com certeza, acreditando que era porque eu havia achado o gesto infantil e idiota. – Isso foi um erro, esquece... – E seus dedos soltaram o botão de segurar a porta.
Eu percebi que eu não poderia mais ficar parada feito uma otária. Ele não estava entendendo direito o meu silêncio e deveria estar me achando rude, ou sei lá. E deveria estar se sentindo envergonhado e humilhado e, sejamos francos, se alguém tivesse que se sentir assim, deveria ser eu. Eu é que estava estragando tudo com a outra personalidade e não estragaria com essa também.

Aproveitei o meu lugar entre ele e a porta e, mal ela estava aberta, quando eu enfiei o meu dedo no mesmo botão que ele estivera apertando. A porta se fechou novamente. Ele, que já havia pegado a coleira de novo e já havia se movido na minha direção e da porta para poder sair, ficou surpreso. Seus pés pararam bruscamente a poucos centímetros de mim, que agora mais parecia uma barreira humana para que ele não saísse.

Seus olhos confusos encontraram diretamente os meus. Ele deveria estar pensando “o que essa louca está fazendo?”, mas eu não me importei. Eu respirava rápida e profundamente agora e, sem palavras, olhava pra ele, como se estivesse hipnotizada. Ele, ainda confuso, ficou esperando alguma reação minha, já que eu não o impediria de sair à toa.

Eu me inclinei devagar para não perder nada, nem mesmo uma piscada de olho que ele desse. Nem mesmo a sua respiração serena e leve, contrastando com a minha. Ele retirou os olhos brilhantes dos meus e os desceu até a minha boca. Ele se inclinou também na minha direção e olhava pra mim com uma expressão confusa e inocente, do tipo “o que você está fazendo comigo?”. Eu deixei que o seu perfume entrasse em mim como música e que anestesiasse meu cérebro, não me deixando pensar em mais nada.

E seus lábios macios tocaram os meus. De um jeito inocente e calmo, como se ele estivesse tendo muito cuidado com alguma coisa. Depois seus lábios começaram a se mexer nos meus e ficaram mais firmes e decididos e eu o acompanhei. Ele usou a mão que estava desocupada para me pegar nas costas na altura da cintura e me trazer para mais perto. Nossos corpos ficaram colados enquanto o beijo ficava mais ardente. Ele soltou o Tosha de novo e passou essa mão, agora livre, devagar sobre a minha pele, traçando uma linha imaginária entre o meu ombro e a cintura. No começo, eu estava usando a mão que não estava apertando o botão para segurar-lhe o pescoço e passar os dedos pelo cabelo. Depois, soltei o botão para abraçá-lo. Ele me abraçou também, com todo o carinho, e a porta se abriu.

- Eu amei o presente. – Disse ainda meio boba, mas espero que isso tenha ficado claro com o beijo. – Vejo você depois.

E saí do elevador. Mas não menos decidida a fazer o que eu estava prestes a fazer.




- Aqui está. – Disse a moça de uniforme apertado demais para o tamanho do próprio corpo.

Achei que houvesse algum engano. Outro, quero dizer. Eu havia esperado quase meia hora para que eles confirmassem no sistema que não haviam me entregado todo o conteúdo da minha encomenda, que eles se desculpassem, que eles me pedissem todos os documentos, inclusive para ver a caixa que estava dentro da minha mochila e se certificarem de que estava tudo certo. Que eu não era um super clone tentando enganá-los, ou sei lá.

E depois disso tudo, inclusive a jornada que eu havia feito de ônibus com um maluco gritando, pela janela, com o povo que estava passando na rua, o que eles me entregam? Um envelope. Até sacudi o envelope na esperança de que houvesse uma chave pequena lá dentro, mas não, estava leve demais para ter algo além de papel.

- Vocês têm certeza de que não falta nada? – Perguntei incrédula querendo a minha chave. Minha irritação era tão grande que eu seria capaz de segurar a moça pelo pescoço ali mesmo e gritar “CADÊ A MINHA CHAVE?”. Mas pelo visto, ela só estava confirmando o que ela já havia repetido três vezes:

- Não falta nada desta vez, senhorita Grizzo.

Não podia ser verdade. Tinha que estar faltando alguma coisa, como um envelope branco iria resolver algum dos meus problemas? Eu não vim até aqui em um domingo para receber um envelope.

- Você pode conferir de novo, por favor?

A atendente suspirou profundamente e me lançou um olhar impaciente, mas seus dedos se mexeram sobre o teclado para olhar, mais uma vez, no sistema se o conteúdo para Mellanie Grizzo envolvia apenas uma caixa marrom e um envelope branco.
- Não está faltando nada, são apenas dois itens.

Eu me joguei na cadeira em frente a ela. Eu não tinha aceitado o convite quando disseram “sente-se” porque iriam buscar a parte que não haviam me entregado. Minha exaltação era tanta que eu não poderia ficar sentada, quieta. Mas agora, eu sentia vontade de morrer ali.

Afundei-me na cadeira com uma expressão mortificada. Eu jamais conseguiria abrir a maldita caixa, jamais. Que tipo de pai é esse que envolve a própria filha nesse tipo de problema? Caixas que não se abrem, pessoas que querem me seqüestrar, coisas estranhas que acontecem. Senti-me tão injustiçada! Eu não pedi nada disso, para começar. Como se os meus problemas já não fossem o suficiente com um namorado de dupla personalidade cuja segunda personalidade já quis me matar. E pensar que, meses atrás, eu estava reclamando porque a minha vida era normal demais.

- Senhorita Grizzo, nós nos desculpamos profundamente com o inconveniente. Pelo fato de os dois itens estarem separados, o pequeno envelope ficou esquecido no cofre, mas garantimos que se houver qualquer coisa que possamos fazer para...

- Esquece. – Respondi triste. – Não estou assim por culpa de vocês. Obrigada. – Esclareci e resolvi me mover. Eles já estavam fechando as portas.

Não era o erro deles que havia me aborrecido e sim o desapontamento completo com o meu pai. E com o mundo em geral. Por que eu tinha que ser envolvida nesse tipo de problemas? Eu só queria viver uma vida legal, com alguém que me ama, família e talvez filhos. E agora? Agora eu estou em risco por causa de algo que eu nem sei o que é. Isso é mortificante.

Saí do local com a cabeça baixa, estava decepcionada e enraivecida. E com toda razão, eu diria. O envelope que eu recebera estava socado no bolso da calça jeans. Eu não tinha a mínima vontade de abri-lo, isto é, se é que eu pudesse abri-lo porque parece uma pegadinha muito boa deixar aos outros objetos que eles não podem abrir.

Quase não havia pessoas nas calçadas, apenas as ruas estavam cheias de carros. As nuvens no céu indicavam uma chuva que não demoraria a chegar e, por isso, todos já deveriam estar em casa ou, se fossem sair, iriam de carro. Eu me apressei a colocar o capuz assim que saí de lá, fazia parte do meu plano de tentar não ser reconhecida. Andei até o ponto do ônibus assim, encapuzada, e chutando pedrinhas que apareciam no caminho.

Não havia ninguém no ponto de ônibus, afinal, para quê alguém iria sair em pleno domingo no horário do almoço quando uma chuva forte estava por vir? Bom, acho que apenas eu era doida o suficiente para tal e, se eu soubesse que era apenas um envelope pequeno, eu poderia ter esperado até quarta.

O ônibus parecia estar atrasado, esperei cerca de vinte minutos sozinha no ponto enquanto observava os carros que passavam apressados na avenida, provavelmente, almejando chegar em casa antes que a tempestade caísse. Eu também queria chegar em casa... E morrer. O meu ódio por tudo e todos que me envolveram nessa palhaçada era quase letal e a decepção era grande demais. Na verdade, a minha vontade era chegar, ir pros braços do Sam e não sair de lá nunca mais. E chorar. Chorar muito pra ele me abraçar de novo e falar que vai ficar tudo bem. Eu estava desolada. E eu sabia que ele poderia me confortar.

Girei o pescoço para ambos os lados e nada. Nenhum ônibus parecia estar por perto. Eu teria que ser mais paciente se quisesse chegar em casa, eu não trouxera dinheiro o suficiente para um táxi ou coisa assim.

O clima estava ficando mais frio e o vento mais forte. Os carros não paravam de passar na avenida e eu ali, sozinha e com frio no ponto de ônibus. Apertei meus braços para que a jaqueta me aquecesse ainda mais e senti o envelope no meu bolso da calça. Resolvi abri-lo.

Nele, havia apenas um papel pequeno, com aparentemente nada escrito. Era só o que faltava, pensei. Mas eu estava enganada, o texto que era minúsculo e as letras é que estavam pequenininhas. Numa caligrafia fina e toda inclinada, que me lembrava aquelas letras de cartas antigas, dizia:

“Os dados foram lançados. Faça a sua aposta. E escolha bem.
- Dan”


Amassei o envelope entre os meus dedos com toda a força que pude, deixei a mochila no banco e levantei-me em um salto. Quando dei por mim, estava chutando a lixeira metálica que estava presa ao chão, perto do ponto de ônibus. Eu a chutava com toda a força que eu tinha, não importando se os meus dedos do pé estavam ficando dormentes sob o tênis. Meus pés alcançavam as barras metálicas com toda a força e velocidade, a haste que segurava a lixeira ao chão tremia e fazia um barulho típico. Meu capuz saiu e meus cabelos voavam com o vento e com o meu movimento histérico enquanto, da minha boca, saíam palavras que não faziam sentido algum para qualquer outra pessoa além de mim.

Sem que eu percebesse, algumas lágrimas desceram rapidamente sobre o meu rosto e explodiram sobre o chão em pequenas gotículas de água. O barulho dos trovões estava, agora, ressaltado sobre o som do metal que estava apanhando. Não havia ninguém por perto na calçada para me impedir de fazer meus dedos do pé sangrarem. Ninguém. Até que um carro parou na frente do ponto de ônibus.

- Mel?

15 comentários:

Anamaria Cruz disse...

Ahhh, tu postou!

Eu preciso dizer. Sua escrita é diferente das que eu conheço. Eu meio que imagino tudo claro, a casa clara, o dia claro. Você escreve de um modo tão objetivo, simples e intelectual que me faz ver as coisas muito claras. rs Gosto disso.

Enfim, eu acho que o Noah tem alguma coisa a ver com a história toda. Tipo um espião. Não sei, mas ele não me engana com a carinha de anjo (ou não).

Estou adorando! Não demore muito pra postar, por favor :(

CarolWinchester disse...

Eu sinto que é o Noah que chegou.

Angélica Reimol disse...

AI MEU DEUS! Quanto mistério, isso me deixa louca! e necessitando de ler cada vez mais seus posts! Nossa, adoro esse livro *-*

Angélica Reimol disse...

Eu sinto que é o Noah que chegou. [2]

Jéssica Lopes disse...

Eu sinto que é o Noah que chegou. +1 Morri com o beijo do Sam do dia ): Sofie muito cabeçuda, ai ai.

Juliana disse...

Quero Maiss
rsrsrrs
maravilhossoooOooo

Ana Marcela disse...

Será que é o Sam? Será que é o Noah? rsrsrs
ai que expectativa!!

amo muito inverso, ainda bem q vc postou, estava com saudades

Anônimo disse...

Eu sinto que é o Noah que chegou. [3]

ai q delícia de beijo ... já quero mais!!!! rsrs

Karen disse...

amoo *_*

Aninha Costa disse...

ahhhh
adorei
eh por isso q naum me importo d esperar pelos seus posts
vc sempre me surpreende e me deixa com vontade d ler mais...
kem estava no carro???
to super curiosa
bjx
;)

Anônimo disse...

AI MEU DEUS QUANDO ELA VAI POSTAR DENOVO...

Ju Fuzetto disse...

Flor....


Aiii escreve logo a outra parte!!! Que curiosidade!!!

Será que é o Sam? adoro inverso, adoro !
beijos

Carla disse...

amo amo

Bella Castilho disse...

A história é muito boa, é realmente muito linda! Mas a demora pra postar acaba fazendo com que o desinteresse apareça, fica a dica :D Mas parabéns,está incrível !

Anônimo disse...

pra q fez tanto alarde se não tinha a intensão de manter os fãs atualizados? Não seja injusta, pelo menos termine de fazer o que vc começou. isso é no minimo RIDICULO!!!E ESSE PESSOAL QUE TA AMANDO EH PORQUE NÃO TEM QUE ESPERAR MESES A FIO POR POSTAGEM COMO MUITOS DESDE QUANDO VC DIVULGOU EM 2009.AFF

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