sábado, 10 de janeiro de 2015
– O que foi isso? – O Herman da
Família Monstro perguntou logo atrás de mim. O tom de preocupação habitando,
pela primeira vez, a sua voz. – Que cheiro é esse? – Percebi que seu corpo se
movia pelo quiosque de madeira. Os cachorros latiam mais forte que nunca.
Noah parou seu movimento de abrir o
zíper da mochila pela metade. Uma bomba sabor mostarda não parecia fazer parte de
seus planos. Olhou para os lados, desconfiado. Não viu ninguém. Os olhos
dourados encaravam o jardim, a garagem e logo mudavam o foco para a mochila que
estava em suas mãos. Aproveitei a distração momentânea para tentar soltar mais
dedos das cordas que me prendiam. O indicador já estava livre e eu estava quase
conseguindo passar o dedo médio pelo vão que se formou entre o nó das amarras.
O homem moreno e mais baixo saiu andando em direção à frente da casa e levou um
dos cachorros consigo. O Herman parecia curioso, mas não se moveu.
Eu tentei jogar meu corpo para frente
fazendo menção de me levantar. As cordas prendiam meus membros entre si, mas
não me atavam à cadeira de madeira pesada. Noah pareceu ficar assustado com
tudo o que estava acontecendo ao mesmo tempo. Mais barulhos de explosões eram
audíveis na frente da mansão. Herman retirou uma pistola de dentro do colete.
Eu duvidava muito que os outros membros da Família Monstro fossem favoráveis ao
porte de armas.
Noah colocou a mochila de lado, em cima
da mesa de madeira que havia no quiosque. Aquele era um espaço planejado para
que houvesse um churrasco dominical e eu esperava muito que eu não virasse a
carne principal. Minha irmã estava na casa, tenho certeza. Quem mais bolaria um
explosivo caseiro feito com mostarda? Ela também era a única que sabia que eu
estava com o Noah fazia horas, mas o que ela poderia fazer? Estaria sozinha?
O loiro colocou uma das mãos no bolso
da calça. Pensei, por um momento, que ele também fosse sacar uma arma, mas
notei que ele havia pegado o celular. Talvez fosse esse o motivo de ele
precisar de dois capangas para render uma menininha. Provavelmente, não
entendia muita coisa quando o assunto era violência física. Discou algumas
teclas e logo estava com o aparelho grudado à orelha, esperando que alguém o
atendesse. Mais uma explosão foi audível e luzes coloridas que formavam
desenhos variados habitaram o céu.
Herman ficou desesperado quando ouviu
que o companheiro berrava, a longa distância, entre os trovões que marcavam o
fim de tarde. Eu ouvia latidos ao longe e o outro cachorro respondia latindo ao
meu lado. Lembrei que Sofia era alérgica. Ela não poderia estar enfrentando um
homem pequeno, mas robusto e um cachorro sozinha. Uma esperança de que o Sam
estivesse com ela começou a brotar dentro de mim. Herman correu em direção aos
gritos e às explosões que aconteciam na parte frontal, não tão distante de onde
estávamos. Noah ainda estava de costas, sussurrando rapidamente ao telefone
coisas que não consegui entender.
Empurrei meu corpo para frente com
toda a força que conseguia. Cambaleante, fiquei de pé. Eu não conseguiria andar
com os pés presos, então comecei a dar pulinhos, feito uma criança que
participa de alguma gincana escolar. Era um trabalho árduo. Cada vez que eu
pulava inclinando o corpo para frente, as cordas que prendiam meus tornozelos
arranhavam a pele, produzindo um atrito que esfolava a epiderme
progressivamente. A cada novo movimento, eu sentia que o machucado ia cortando
mais fundo.
Noah virou-se quando eu já estava
quase conseguindo sair quiosque à moda de um canguru. A raiva o fez arremessar
o celular no chão amadeirado. Correu em minha direção e, não importava o quanto
eu tentasse apressar minha saída, eu nunca conseguiria fugir de alguém que não
tinha as pernas amarradas entre si. Arremessei meus braços presos em sua
direção com toda a força quando ele tentou me agarrar por trás. A bofetada
atingiu-lhe o tórax e ele pareceu ficar ainda mais furioso. Deu-me uma
cotovelada nas costas enquanto tentava me imobilizar. Continuei me mexendo
freneticamente enquanto sentia meu dorso arder. Mesmo amarrada, ele teria que
suar a camisa se quisesse me manter ali.
Mais gritos e mais explosões foram
audíveis enquanto Noah e eu continuávamos nosso confronto injusto. Tenho certeza
que se ele estivesse com mãos e pés amarrados como eu estava, eu teria acabado
com ele. Ele tentou acertar a minha cabeça com um soco quando ouvimos outro
trovão. Eu me inclinei para baixo e, por instinto, meti-lhe uma cabeçada na
barriga. Ele cambaleou e quase caiu. Começou a chover.
A água molhava meus cabelos cor de mel
que começaram a ficar ensopados e a cair por sobre o meu rosto. Eu não tinha
como tirá-los da frente dos meus olhos. Noah urrou de ódio enquanto comecei a
pular para frente de novo, já estava bem próxima da piscina. Se eu conseguisse
andar mais alguns metros, poderia chegar ao corredor que levava à garagem.
Então encontraria minha irmã na parte frontal da mansão. Meu subconsciente
tinha certeza que havia escutado a voz do Sam. Ele estava lá. Pela terceira vez
nessa história, alguém que inicialmente tinha o plano de me matar estava me
salvando a vida.
Noah se jogou na tempestade quando
agarrou minhas costas novamente. Eu recebia socos e pontapés enquanto me
remexia tentando me defender desse dissimulador. Gritos escaparam da minha
garganta quando a dor me atravessava profundamente a pele, como se fosse um dos
espetos daquele churrasco que eu havia citado antes. Ele também gemia enquanto
eu o acertava como podia. Meu ódio era mais poderoso que qualquer sensação
dolorosa que poderia surgir naquele instante. Eu queria feri-lo da pior maneira
possível.
Meus ouvidos também captavam o som de
uma briga que estava acontecendo lá fora. Eu não sabia como Sam e Sofia estavam
se saindo contra dois homens e dois cachorros em meio a uma das maiores
tempestades dos últimos tempos. Eu, sinceramente, esperava que nenhum dos dois
se machucasse. De repente, eu não consegui ouvir mais nada.
Meus olhos ardiam dentro da água. A
visão embaçada só me proporcionava ver um tom de azul claro e feixes de luzes
que tremiam lá em cima. A água entrava pelos meus ouvidos e abafava qualquer
som, como se estivessem distantes demais agora. Segurei a respiração para que
os meus pulmões também não fossem invadidos. Noah havia me empurrado na piscina
sem qualquer hesitação. Eu senti meu corpo descendo como se fosse uma pedra que
alguém jogou ao mar. Desesperadamente, tentei desatar os nós que prendiam as
minhas mãos e todas as tentativas foram frustradas. Mexia o corpo em frenesi,
tentando subir de volta à superfície.
Os pulmões começaram a doer enquanto a
aflição aumentava de forma progressiva. Minha cabeça se mexia deslocando todo o
líquido subjacente, mas não conseguia atingir as luzes lá fora, que pareciam
próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes. Senti que meu peito ia murchando
rapidamente, o coração batia acelerado, os pensamentos ficavam cada vez mais
borrados.
Eu meditei muito sobre os caminhos que
levaram minha vida até o ponto onde se encontrava naquele instante. Em uma
dessas reflexões percebi como situações e encontros insignificantes podem levar
a um futuro inesperado. Se eu, por acaso, fosse uma garota que acreditasse em
coincidências, chegaria à conclusão de que a vida não passa de encontros
desordenados assim como pingos de chuva que se chocam com o vento, mas como não
sou assim, creio que as coisas acontecem por um motivo específico. Nada do que
havia acontecido até aquele momento onde eu me afogava lenta e dolorosamente
fora coincidência. Ter conhecido o Sam, o Noah, o que aconteceu com o Sr.
Felix, aquele mendigo, a invasão ao meu apartamento, tudo fazia parte da mesma
rede de mentiras que outras pessoas haviam planejado para mim. Agora, esses
mesmos pingos de chuva se chocavam contra a água turbulenta que me sufocava a
cada novo segundo. Esses pensamentos e reflexões foram sendo, vagarosamente,
apagados. O líquido muito límpido filtrava a minha mente, envolvia meu corpo,
asfixiava meus pulmões.
O vazio que preenchia meus ouvidos, de
repente, começou a ser substituído por uma melodia conhecida. The Final
Countdown ressoava dentro da água e apenas dentro da minha cabeça. Eu sabia
porque: era a minha contagem final.
Talvez esse tenha sido, o tempo todo, o motivo pelo qual a primeira
personalidade do Sam sempre tocava essa música. De alguma maneira, seu
subconsciente sabia que estava tocando para mim. A contagem era minha agora. E
ela estava decrescendo como a areia de uma ampulheta.
Subitamente, meus olhos visualizaram
uma figura masculina na água. A imagem borrada vinha ao meu encontro sorrindo.
Os olhos cor de mel me encaravam com ternura e os lábios se escancaravam em um
sorriso convidativo. Era como se ele estivesse me chamando. Pisquei com a
dificuldade de abrir os olhos mais uma vez. Eu sentia meu peito murchando e a
dor era suficiente para paralisar meus movimentos. Eu parei de remexer o corpo
tentando encontrar a superfície. Imóvel, encarei meu pai com os olhos que eu
havia herdado dele. De repente, era como se eu sentisse o bilhete que estava no
meu bolso dissolvendo-se em meio à água. Era como se eu mesma estivesse me
esvaindo. E eu não tinha medo, meu pai estava comigo. Ele estava me chamando
enquanto a música tocava em alto e bom som na minha cabeça. Quando o último
fragmento de papel dispersou-se, eu também perdi os sentidos.
– Mel? Mel! – Eu ouvi a voz conhecida
do Sam me chamando com urgência. – Você precisa acordar, meu amor! Agora!
Abri os olhos e encarei cabelos muito
negros caindo sobre a minha face. Ouvi a tempestade decaindo sobre nós. Eu
estava toda encharcada e deitada sobre alguma pedra mais fria que o meu próprio
corpo. Ergui meu tronco e notei que ainda estávamos na casa do Noah, próximo à
piscina onde eu quase me afoguei. Sam parecia muito desesperado, estava
sangrando em várias partes do corpo. Estendeu uma das mãos fortes para me
ajudar a levantar. Eu ainda estava meio zonza.
– A mochila. – Foi o que eu consegui
pronunciar enquanto encarava a mesa de churrasco do quiosque. Sam correu para
pegar a minha mochila, colocou-a nas costas e logo estava ao meu lado de novo.
– Vem. – Puxou minhas mãos com mais
força do que o esperado. Eu o segui. Ainda estava tentando focalizar o que
havia acontecido. Notei que eu não mais estava com os membros amarrados. Sam
deveria ter me soltado assim que me tirou da piscina. – Não temos muito tempo.
Sua irmã conseguiu apagar um deles, mas teve problemas com os cachorros.
– Cadê o Noah?
– Levou uma surra. – Ele disse com
tamanha ira que foi surpreendente até mesmo para mim. – Covarde.
Continuamos andando pelo corredor de
pedra que levava à ampla garagem da mansão do Noah. Eu ainda estava bastante
confusa sobre os últimos fatos, mas estava sendo guiada pelo Sam, então minha
confiança ia retornando aos poucos. A situação de urgência na qual estávamos
também não me permitia ficar tonta por muito tempo. Precisávamos ser rápidos se
quiséssemos sair todos dali com segurança.
Chegamos à garagem muito branca,
planejada com azulejos e pisos de cor muito clara. Notei que um carro conhecido
estava estacionado nela. Sam tinha trazido Sofia até aqui no carro em que
praticávamos as aulas de direção e, não sei como, ele tinha conseguido
estacioná-lo na garagem do Noah. Teria ele deixado o portão destrancado depois
que entramos? Ou arrombamento seria outra das habilidades noturnas no Sam?
Tudo estava quieto demais, não havia
sinal de nenhum dos dois homens ou dos cachorros que haviam migrado do quiosque
para aquela direção. Sam soltou minhas mãos com cautela e entrou em estado de
alerta. Caminhamos devagar até o veículo quando percebemos que, atrás dele,
Sofia estava amarrada e tinha um pano dentro da boca.
O homem moreno estava apontando uma
faca diretamente ao seu pescoço. Provavelmente, eles esperaram o Sam se afastar
para atacar a minha irmã. Percebi que Herman estava sentado sobre o chão da
garagem, ainda tonto e olhando para baixo. O rosto outrora muito branco estava
cheio de hematomas. Também parecia ter torcido ou quebrado o pé. O outro homem
sorria com os dentes ensanguentados enquanto rendia Sofia. Eu conseguia ver o
horror refletido nos olhos arregalados da minha irmã.
Sam não hesitou por um segundo.
Qualquer outra pessoa normal e sensata trataria essa situação com extrema
delicadeza, mas ele não. Ele saiu correndo feito um tigre das savanas e
avançou. O homem também ficou surpreso com essa reação, esbugalhou os olhos e
retirou o sorriso dos lábios enquanto empurrava minha irmã, que colidiu com a
parede. Eu gritei e corri para desamarrá-la. Um clarão gigantesco iluminou o
lugar.
– Entra no carro. – Ordenei e ela saiu
correndo, trêmula. Entrou pela porta de trás e eu fiquei mais tranquila que ela
não estava mais em perigo iminente. Agora eu tinha outro problema para me
preocupar.
Sam e o homem moreno lutavam alguma
modalidade que eu não sabia bem qual era. Golpes eram deferidos junto ao
barulho dos trovões. Sam era muito forte e sabia lutar. Desconfio que ele fez
algum tipo de treinamento quando era criança ou coisa assim. Mas ele estava em
desvantagem. Assim como Noah estava me batendo enquanto eu estava amarrada, o
outro homem estava armado com uma faca enquanto lutava com o Sam.
Apressei-me na direção deles quando
percebi que aquele homem queria esfaquear meu namorado de qualquer maneira.
Esquecendo toda a dor, toda a sensação de vertigem e toda a ardência que eu
sentia em todos os músculos do meu corpo, comecei a chutar as pernas do homem
moreno enquanto dava socos em suas costas com o máximo de força que eu
conseguiria. Ele tentou defender-se de mim dando um coice para trás. Meu corpo
oscilou e eu levei um tombo. Os olhos furiosos do Sam repousaram sobre mim e
ele tacou um murro no meio da cara do seu oponente. O homem rugiu e lágrimas
discretas caíram sobre sua face, então, cravou a faca no braço direito da
pessoa que materializava todo o amor que eu sentia.
Samuel fez uma careta e gritou como eu
nunca tinha ouvido antes. O rival riu de alguma piada que não tinha graça
nenhuma e retirou a faca fincada nos músculos dele. Ele berrou novamente,
colocou a mão esquerda sobre a ferida e se curvou, contorcendo-se com a sensação
dolorosa. Eu me senti a pior pessoa do universo. Era simplesmente terrível observar,
sem poder fazer nada, uma pessoa que você ama sendo alvo de tamanha dor. E
pior: era tudo minha culpa.
Com um movimento rápido, Sam deu um
chute violento no abdômen do homem moreno e este caiu no chão, gritando e
tentando vomitar. Herman parecia ainda estar alheio a tudo o que estava
acontecendo. Eu me levantei e tentei ajuda-lo a entrar no carro. Sam ainda
fazia muita careta enquanto tentava conter o sangue que escorria pelo seu
braço. Entrou pela porta do passageiro e eu já sabia o que eu teria que fazer
em seguida.
– Você vai ter que dirigir.
Minhas mãos tremiam enquanto o medo me
era mais real agora do que nunca. Um frio diferente de todo aquele que eu
estava sentindo percorria minhas roupas encharcadas. Era meu dever, agora,
salvar as pessoas que eu amo.
Sofia estava encolhida no banco de
trás como se fosse um tatu-bola. Ela levantou a cabeça quando ouviu que eu
teria que dirigir. Tenho certeza que ela estava pensando qual morte seria menos
dolorosa. Não falou nada, apenas encolheu-se mais um pouco. De todas as pessoas
que eu conheço, ela era a que menos acreditava que a força física resolveria
qualquer coisa. Entretanto, sua inteligência incomum não foi capaz de salvá-la
de uma faca apontada para o seu pescoço. Estava traumatizada.
– Eu não consigo. – Choraminguei
sentada no banco do motorista. Eu não sabia se eu seria capaz disso. Encarei o
Sam novamente para ter certeza de que ele não poderia fazer isso por mim. O
braço direito perdia mais sangue a cada segundo e começava a sujar o tecido do
banco.
– Eu confio em você.
Aprendi uma lição. As pessoas que estão
ao seu redor e que o amam são cúmplices diante de quaisquer dificuldades que
apareçam pelo caminho. Elas estão sempre ali para acolher e ajudar a saltar os
obstáculos na corrida da vida, mas elas não podem o salvar sempre. Chega uma
hora que é a sua vez de usar toda a sua energia interior para saltar sozinho. É
a sua vez de criar asas, fechar os olhos e adquirir responsabilidade sobre seus
próprios problemas. Sam não poderia me salvar pela quarta vez nesta história.
Chegara a hora que eu deveria ter força o suficiente para fazê-lo. E eu fiz.
Girei as chaves do carro e começamos a
dar a ré. O moreno ainda gritava no chão e tinha ânsias de vômito enquanto
Herman parecia ter recuperado seu estado normal. Essa combinação de mostarda
com sabe-se-lá-o-que que a Sofia produziu dentro do próprio quarto era capaz de
causar uma confusão mental até grandinha, mas que não duraria muito tempo. Já
estávamos saindo da garagem quando ele se levantou e começou a procurar pela
pistola que tinha em posse quando estávamos no quiosque. Quando o carro tocou o
asfalto da rua, ele começou a atirar.
– Abaixa! – Sam gritou urgentemente
enquanto olhava para trás.
A tempestade dificultava muito minha
visibilidade. Fiquei desesperada com o barulho de tiros atingindo a lataria do
veículo. Preferi manter o foco no que eu estava fazendo e não olhei para trás.
Minha irmã tatu-bola ainda estava encolhida, segura. Sam parecia satisfeito com
o meu desempenho como motorista. Minhas mãos estavam tremendo, meus pulmões
davam a impressão de que iriam explodir a qualquer momento e todas as minhas
células do corpo reclamavam de uma dor intensa, mas eu não tinha tempo para
nada disso. Eu precisava continuar
dirigindo. Se eu parasse, estávamos mortos. E a chuva não estava nem aí.
Continuava a cair lá fora como se nada estivesse acontecendo.
– Entra. – Falei em tom de
complacência. Ele tinha me dado as chaves do apartamento para que eu pudesse
abrir a porta. Ainda estava com o braço sangrando e se recusava a ir ao
hospital. Como era teimoso.
Sofia tinha preferido ir direto para
casa. Não falou mais nada o caminho inteiro. Fiquei com medo de que ela tivesse
ficado seriamente traumatizada. Era muito incomum que ela passasse tantos
minutos assim sem fazer qualquer tipo de reclamação. Sam tinha dito que ela o
procurara, também disse que ela combinou alguns fogos de artifício com aquela substância
de mostarda para criar um explosivo alternativo de última hora. Eu não sei como
ela poderia ter planejado tudo isso sozinha ou, até mesmo, conseguido trazer à
tona a segunda personalidade do Sam mesmo durante o dia. Era uma super irmã.
– Se divertiram? – Uma voz feminina
perguntou assim que entramos no apartamento. Meu coração pulou com o susto. Por
um segundo, pensei que ainda não estivéssemos livres do perigo.
Júlia sorriu de lado como fazia o
irmão. Era como se tivesse acabado de contar uma piada que só ela pudesse
entender. E talvez fosse isso mesmo. Os cabelos muito grandes e negros presos
em maria-chiquinha quase no topo da cabeça seriam quase inocentes se ela não
tivesse uma arma presa à cintura. Talvez fosse sua melhor amiga. A regata preta
com um decote maior do que deveria para uma pessoa tão violenta mostrava uma
adolescente magra, mas com um corpo moderadamente malhado. Eu não sabia se ela
lutava tão bem quanto o Sam, talvez suas habilidades envolvessem a pistola
mesmo.
– Julie! O que faz aqui? – Sam pareceu
contente ao vê-la. Fiquei confusa. Sua outra parte parecia detestá-la.
– Sammy! – Ela correu para abraçá-lo.
Tomou cuidado para não apertar o braço que ainda jorrava sangue. – Você não
atendeu minhas ligações!
– Estive ocupado. – Ele inclinou a
cabeça para mostrar o braço machucado. Eu o ajudei a chegar até o sofá e
comecei a procurar aquela maletinha onde ele guarda gaze, remédios e essas
coisas. Só então, percebi uma grande quantidade de malas cor de rosa cheia de
patinhos estampados que estavam empilhadas sobre o chão da sala.
– Vou morar com você! – Júlia disse
tentando parecer animada. Com certeza ela gostava mais dessa personalidade que
da outra. Fiquei chocada. Até parei de procurar o que quer que fosse para poder
escutar o resto dessa conversa.
– Júlia... – Ele falou em tom sério e
ela pareceu não se importar. – Você sabe das complicações.
– Eu não ligo. – Deu de ombros e
sentou-se no sofá. Aquele dia estava vestida como se fosse a Lara Croft, agora
estava usando uma sainha preta como se fosse uma paquita, com exceção da arma
colada à cintura fina. Ela era uma combinação muito bizarra entre o infantil, o
sexy e o mortal. Os olhos verdes piscaram para ele em sinal de cobrança. Tive a
impressão de que ele não queria discutir isso nesse momento.
– Já conhece a Mel? – Eu a encarei,
intimidada. Era tão mais bonita, forte e confiante do que eu mesma, além de ter
um ar sombrio que eu não tinha. Não sei se eu deveria ter medo dela.
– Ah. Oi. – Ela disse apenas, como se
não fizesse nenhuma questão, mas também não foi mal educada. Pegou o controle
remoto, ligou a televisão e repousou as pernas sobre a mesinha de centro como
se fosse a dona da casa.
Eu sorri e acenei. Eu não queria criar
problemas com a irmã do Sam. Além do mais, ela não parece ser uma pessoa ruim,
ela só se tornou desconfiada e meio paranoica por causa de todos os problemas
que rondavam sua família. Era compreensível.
Percebi que, na televisão, se passavam
os capítulos finais da novela mexicana. Kate Lúcia e Rodolfo Augusto estavam
juntos e felizes enquanto Maria Antonieta, não sei como, tinha uma prótese
mecânica no lugar do braço, parecendo com o Darth Vader. Sam e eu nos juntamos
a ela no sofá. Acho que nós três poderíamos formar uma família algum dia. Isto
é, se eles aceitassem alguém que não fosse uma espécie de ninja no grupo.
– Ah, você sumiu! – Rebecca disse ao
telefone na tarde seguinte. Ela havia insistido que queria me ver, mas eu tenho
certeza que ela surtaria se visse a quantidade de marcas roxas que eu tenho
pelo corpo nesse momento.
– Estive fazendo limpeza ontem. –
Menti enquanto encarava a quantidade normal de tranqueiras empilhadas pelo meu
quarto.
– Fiquei preocupada! Você quer
conversar sobre aquela caixa que seu pai te deixou? Já sabe o que é?
– Não, ainda não. Acho que vou abrir
quando eu estiver pronta. – Respondi com indecisão. Vislumbrei o relógio de
parede do meu quarto. Ainda faltava algum tempo para que eu pudesse curtir o
feriado com o meu namorado.
– Certo. – Becca concordou e não tocou
mais no assunto. Também fiquei pensativa.
Acho que o braço do Sam iria melhorar,
no fim das contas. Ele tinha me garantido que não tinha sido tão grave assim e
que, se piorasse, iria procurar um hospital. Eu só não sabia como ele
explicaria a sua outra personalidade essa facada. Talvez a Júlia o ajudasse.
Pelo jeito, ele teria que aceitar a irmã morando com ele por algum tempo. Eu
não sei se isso atrapalharia nossa relação, acho que não. Geralmente ficávamos
no meu apartamento e não no dele. Sem contar que a Júlia não parecia o tipo que
empatava os romances do irmão. Na verdade, ela não parecia se importar com nada
que envolvesse nós dois.
– Preciso da sua ajuda. – A minha
melhor amiga confessou depois de um tempo que ficamos caladas no telefone. Secretamente,
perguntei a mim mesma se essa ajuda envolveria o Lean. – Tive uma ideia.
– Qual? – Perguntei temendo a
excitação que brotara de repente em sua voz.
– Vou criar um site de
relacionamentos!
– Que? – Eu estava perplexa. Não era
exatamente isso que eu quis dizer quando falei que ela deveria procurar um
romance no lugar certo.
– Um monte de gente acha o amor da sua
vida na internet! Pensei em criar um site que combina as pessoas compatíveis,
sabe... Falei com o Nilson, aquele nerd lá do colégio, ele disse que pode criar
um pra mim! – Avisou como se fosse a melhor notícia dos últimos tempos. Eu
duvidei muito. – Você, Sam e Sofia podem ser os primeiros usuários! Que tal?
– Você ficou louca? Sam e eu já somos
namorados e Sofia prefere ser enforcada por um fio dental do que ter que
encostar em alguém.
– Mas não é pra realmente combinar
vocês, tipo... É só pra já ter usuários. Pra encorajar as outras pessoas a se
inscreverem também. – Ela explicou em tom de súplica. Senti um bocado de
compaixão pela minha amiga. Acho que eu poderia sim fazer isso por ela.
– Tudo bem. Depois me manda o cadastro
que eu convenço o Sam e a Sofia.
– Te amo! – Ela gritou bem animada e
eu me senti melhor.
– Então quer dizer que você me traiu
comigo mesmo. – Sam fingiu estar aborrecido enquanto fincava os pés na areia da
praia.
De última hora, tínhamos resolvido
passar a noite de feriado naquela praia onde fomos ao luau certo dia. Ele mesmo
havia enfaixado o braço direito e disfarçava o machucado usando uma das
costumeiras jaquetas pretas. Eu me senti feliz que ele estivesse ali comigo,
naquela hora tão importante.
A noite estava tranquila e estrelada,
muito inversa à noite anterior. Se eu olhasse para cima, conseguiria distinguir
minha estrela no céu. Ela brilhava em um tom avermelhado se destacando na
constelação de escorpião. Ao encará-la, senti um toque de serenidade que há
muito tempo eu não sentia. Era como se eu acreditasse que o pior havia passado.
Agora eu poderia ser feliz do lado da pessoa que eu amo. Mas não antes do
próximo passo que daríamos hoje.
Sentei-me na areia sem me incomodar de
sujar minhas calças jeans. Sam sentou-se ao meu lado e repousou no chão a
mochila que carregava nas costas. Encaramos as ondas do mar por alguns
instantes. Ele parecia tão calmo quanto o meu coração, que não batia mais
apertado, desesperado dentro do peito. Pela primeira vez em muito tempo, ele
sentia que poderia ser livre dentro do meu peito.
– Tem certeza que quer fazer isso? –
Ele me perguntou com seriedade. Era uma grande decisão para mim. Talvez isso
que estávamos prestes a fazer me mudaria para sempre.
– Tenho. – Respondi decidida. Eu não
iria dar pra trás na última hora. Não mesmo.
Sam segurou meu rosto com aquela força
habitual. Nada delicado, mordeu meus lábios e entramos em um beijo profundo,
com direito à respiração descompassada e aquela urgência costumeira aos nossos
beijos. Meus dedos tocaram os cabelos negros tão adorados por mim. Puxei-os com
moderação, eu sabia que o Sam gostava de uma dorzinha prazerosa, pra variar.
Ele respondeu mordendo meus lábios com mais força.
– Está pronta?
– Uhum.
Ele, então começou a abrir o zíper
vagarosamente. A mochila preta logo estava aberta com um estalo. Ele, então,
colocou as mãos dentro de um dos bolsos. Escutei uma das ondas batendo contra
uma rocha próxima.
– Onde você colocou? Não encontro.
Puxei a mochila para perto de mim. Eu
tinha certeza que tinha colocado no bolso maior. Não estava lá. Abri todos os
outros bolsos com muita atenção. Nada. Ela tinha sumido. Minha caixa tinha,
simplesmente, sumido. Será que Noah a tinha pegado? Eu lembro que ele havia
colocado a mochila sobre a mesa, mas não tinha chegado a abri-la. Ele ouviu os
barulhos causados pelas bombas da Sofia e começou a falar no telefone com
alguém. Depois veio tentar me impedir de fugir e me jogou na água. Eu não sabia
o que tinha acontecido em seguida.
Quando perguntei ao Sam, ele disse que
tinha encontrado Noah logo depois que ele me jogara na água. Então bateu nele e
pulou na piscina para me socorrer. Enquanto isso, ele tinha fugido. Mas a
mochila estava no mesmo lugar quando acordei. Será que ele tinha voltado apenas
para pegar a caixa e sumiu? Bom, era o que fazia mais sentido agora.
A decepção tomou conta da minha face.
Eu precisava saber, precisava descobrir o que tinha me colocado em todos esses
problemas. Sam também não fazia ideia do que poderia ter lá dentro. A
curiosidade queimava em mim, ardia por dentro e se transformava em lágrimas que
me molharam a pele. Recebi um abraço apertado.
– Hey. – Ele disse e eu encarei os
olhos cor de oliva me sentindo desolada. – Isso não é importante.
Sam me beijou a testa. Talvez fosse
melhor assim. Se eles tivessem logo a maldita caixa, estaríamos livres de todos
os problemas que nos rondam. Poderíamos ser felizes sem a ameaça do perigo
iminente. Poderíamos ser sinceros um com o outro. A falta da caixa não era uma
perda. Significava um recomeço para nós dois. Uma nova chance que poderíamos
aproveitar juntos. Não era importante saber o que havia lá dentro. O objeto que
ela continha nos separou, nos uniu, nos tornou mais fortes. Transformou a mim e
a ele. Eu não era mais a mesma garota que eu era quando comecei a contar minha
história. Ele também não era mais o homem que saía matando os outros, todas as
noites, por vingança. Ele era, agora, duas pessoas inversas, mas duas pessoas
inversas que me amavam. A caixa nos transformou. Ela não era o essencial nessa
história. Nós dois éramos.
– Pense pelo lado bom. – Ele disse
depois de algum tempo em que fiquei calada, refletindo tudo isso.
– Qual?
– Eu te amo em dobro.
Fim do primeiro livro.
-------------------------------------------------------------------------------------------------
NOTA DA AUTORA:
Eu sei que demorei DEMAIS para publicar tudo e peço muitas desculpas por isso! Infelizmente eu fiquei muito tempo tentando publicar e não consegui. Depois achei que ninguém mais seguia o livro, então acabei não postando (terminei em 2013). Quando percebi que muitas pessoas me procuraram na página do Facebook pedindo a continuação, resolvi postar.
Ainda não desisti de publicar, mas acho que esses serão planos pra um futuro ainda um pouco distante. Ando escrevendo outro romance, mas mais complexo e atrelado à ficção.
Espero que me perdoem pela demora.
Espero que gostem do final parcial (ainda estou pensando se devo continuar).
Tenho muito carinho por todas.
Lihn Lee.
Assinar:
Postagens (Atom)