domingo, 14 de junho de 2009
- Ainda está com frio? – Ele perguntou depois de algum tempo.
Desde que nosso primeiro beijo ocorreu resolvemos ficar parados somente aproveitando a presença um do outro. Estávamos deitados na areia da praia, ainda de frente para o mar e escondidos pela grande rocha que nos separava do resto da festa. Sam estava sentado com as pernas estendidas e eu estava deitada em seu colo protegida por seus braços em um abraço apertado.
Balancei a cabeça em resposta à sua pergunta e ele me abraçou mais forte. Ficamos assim por vários minutos até eu perceber que esse não era o propósito da festa. Tudo bem que ficar agarrada ao Sam e, pela primeira vez em muito tempo, sentir que alguém realmente estava cuidando de mim e não o contrário era muito legal, mas eu o levei naquela festa para nos divertirmos e isso não estava acontecendo. Eu já tinha chorado e o deixado aflito, discutimos e gritamos um com o outro, agora estava tudo bem, mas não significa que isso era divertido.
- Quer dançar? – Perguntei tempos depois.
Ele parou de encarar o mar preocupadamente como se estivesse prevendo algo muito ruim e me olhou.
- Você não pode fazer esforço com o pé.
- Você não está me ajudando. – Respondi calmamente.
- O que você está tentando fazer? – Ele sorriu divertido pela primeira vez na festa.
- Só queria que a gente se divertisse. – Joguei os ombros para trás e olhei para cima onde o rosto dele estava muito perto do meu, mas ao contrário, como quando o homem-aranha beija a Mary Jane.
- Eu estou me divertindo. – Ele respondeu e sorriu para mim. Estava claramente tentando me animar. Era uma boa tática, afinal, não adianta chorar pelo que já foi feito. Eu não poderia, mas estava ali, nutrindo um sentimento por alguém que não podia ser meu por inteiro e, ao mesmo tempo, sendo ameaçada de morte por pessoas que não conheço. O que me restava a fazer era aceitar isso e seguir em frente. Pensar nas minhas escolhas errôneas não adiantaria de nada.
- Não estamos fazendo nada divertido.
- Eu acho divertido mexer nos seus cabelos.
Eu não falei nada. Não iria discutir sobre a visão dele de divertimento. Não é que eu não estava me divertindo, ao contrário, era adorável observar as ondas sendo amparada por seu corpo quente, mas eu estava preocupada em não mostrar a diversão que eu havia lhe prometido.
- Como é para você?
- O quê? – Ele perguntou calmamente ainda mexendo nos cachos do cabelo.
- Como você se sente... Não tendo o controle sobre, você sabe, si mesmo.
Ele, de repente, enrijeceu o corpo e ficou mais sério.
- É muito angustiante. – Respondeu afinal.
- Se importa de me explicar mais? Quero saber o que você sente.
- Você sabe o que eu sinto.
- Não quis dizer com relação a mim. – Expliquei. – Quis dizer com relação a si mesmo.
- Quer mesmo ouvir essa história?
- Quero.
- Nas primeiras vezes em que apareci eu não tinha muita clareza sobre o que estava acontecendo. – Ele suspirou. – Sentia uma raiva profunda e uma sede que não tinha explicação aparente. Foi então que o Cristian decidiu me explicar o que estava havendo comigo.
- O que ele te disse? – Fiz menção de levantar-me para escutar melhor a história, mas ele fez a força contrária e me prendeu deitada em seu colo.
- Que eu não poderia fazer coisas as quais fosse me arrepender depois porque, uma vez feito, não teria volta e talvez eu não seria a pessoa que arcaria com as conseqüências.
- Ele se referiu ao outro Sam.
- Sim. Se eu fizesse qualquer coisa que me colocasse em perigo, talvez não fosse eu que sofreria. Mas isso não me explicava tudo. Isso não me esclarecia os motivos que me levavam a sentir a vontade que eu estava sentindo.
- Que vontade?
- De matar.
Arrepiei quando ouvi essa palavra. Comigo o Sam não parecia agressivo nem raivoso, pelo contrário, tinha um senso de humor negro e gostava de fazer piadinhas e acariciar meus cabelos embora às vezes aplicasse muita força. Mas o fato em questão é que eu o vi quando olhou para o Noah naquele dia segurando um cano, antes que eu esclarecesse que o rapaz não era perigoso seu olhar estava repleto de ódio e não duvidei, em momento algum, que fosse mesmo capaz de feri-lo.
- Eu não sabia o porquê, mas tinha extrema vontade de destruir tudo ao meu redor. – Ele continuou não percebendo minha expressão temerosa.
- E o que o Cristian fez?
- Disse que eu não era assim. Que eu sempre fui uma pessoa concentrada e calma e, quando meus pais morreram, não demonstrei sequer melancolia.
- Como não?
Lembrei-me do dia em que fiquei sabendo da morte do meu pai. Não esqueço a rapidez em que meus joelhos cederam e atingiram o chão antes de eu colocar as mãos sobre o rosto, fechar os olhos e desejar que fosse um pesadelo; que não estava mesmo acontecendo. Sofia era muito pequena, não entendeu tão bem a situação, mas mesmo assim demonstrou sua tristeza enfiando-se dentro do quarto e devorando todos os livros que encontrou buscando esgotar um eventual tempo que sobraria para triturar a morte de alguém que nos viu nascer. O ponto é que mesmo as pessoas mais contidas demonstram, de alguma forma, sentimentos nessa situação.
- Eu não sei direito. Carrego ainda muitas dúvidas sobre a forma com que apareci. O que sei é que tentei controlar a raiva e agir com esperteza. Buscando, sem deixar rastros, os motivos que me levaram àquele estado de raiva. A ira era minha prisão e, aonde quer que eu fosse, não conseguia me desviar dela. Então um dia descobri lugares onde pessoas do tipo das que eu estava procurando gostavam de freqüentar.
- Que tipos de lugares?
- Casas noturnas, cassinos ilegais, corridas informais pelas ruas durante a noite.
- E então? – Eu estava muito concentrada em sua história. Mas ele parecia não perceber que eu estava lá. Embora continuasse acariciando meus cabelos, olhava para o mar como se estivesse recordando, relembrando seu nascimento.
- Fiquei sabendo de um homem, dono de um bar imundo, que tinha o hábito de apresentar as pessoas certas para as pessoas que estavam procurando.
- O que quer dizer?
- Ele tinha um amplo conhecimento no ramo de apresentar pessoas capazes de tudo por um pouco de dinheiro para pessoas que precisassem de serviços sujos como esse. Ele confessou ter marcado uma reunião entre um dos representantes da Companhia e o infeliz que cometeu o crime.
- Por que ele te contaria isso? – Perguntei sabendo que esse não era o tipo de coisa que as pessoas sairiam gritando por aí.
- Eu o obriguei a contar.
Eu não quis imaginar as maneiras que ele usara para tal.
Ele dizia tudo isso sem o mínimo de sentimento, apenas como se estivesse relembrando tempos que, há muito tempo, se passaram. Ouvi as águas turbulentas indo de encontro às rochas na escuridão quando ele deu essa pausa.
- Ele teve que me mostrar os recibos assinados pela Companhia fantasma para que eu acreditasse que ele nunca sequer encontrara e nem sabia a pessoa que encomendou esse crime. Então fui obrigado a procurar pelo outro extremo.
- O assassino. – Deduzi.
- Exato. – Ele engoliu em seco. – Primeiro procurei saber quem era, onde morava e o que mais fizera, quais outros crimes cometera. Descobri que ele estava ligado a uma série de outros assassinatos que pareciam acidentes e que nunca eram levados adiante pela polícia. Investiguei vários deles e percebi que não seguiam uma ordem lógica, portanto deduzi que ele matava as pessoas que era pago para matar. Provavelmente pago por diferentes pessoas. Um imundo.
Eu fiquei horrorizada. Talvez as pessoas tivessem certa razão quando falavam que eu vivia no meu próprio mundo de fantasia, por isso me assustei quando fui trazida tão bruscamente à uma realidade tão fria e crua. Era vergonhoso que alguém se sujeitasse a esse papel. Matar pessoas que nem ao menos conhece, derramar lágrimas de familiares inocentes e causar danos maiores como os danos psicológicos que causara em Sam e tudo isso por causa de notas de papel. É engraçado a maneira como as pessoas acumulam valores à papéis, jóias e objetos que, em pouco prazo, só servirão para enfeitar seu caixão. Quero dizer, não faz sentido ser tão sujo em troca de algo que não lhe acompanhará por muito tempo.
Eu observei Sam por algum tempo, também não era glorioso o que ele havia feito. Usar a violência para combater outra violência não era uma forma de resolver o problema, ao contrário, só aumentaria o terror, efeito bola de neve. É claro que eu não consegui pensar em punições severas o bastante para as pessoas que lhe causaram tanto mal e, pela primeira vez na história, me senti enraivecida o bastante com gente desse tipo. Porém, é muito hipócrita julgar seus crimes de homicídio e castigá-los com assassinato.
- Depois que o encontrei comecei a investigar coisas mais pessoais. O que gostava de fazer, onde costumava ir, seus hábitos, suas preferências.
- Para quê?
- Cristian deixou bem claro que eu não deveria deixar rastros. Eu não me importava de levar a culpa, não me importava de ser capturado, não me importava de morrer. Eu não sentia medo do que minhas ações poderiam fazer.
- Então por quê...
- Porque pensei em mim mesmo, minha outra parte de mim. Uma parte que, talvez, não quisesse que as coisas levassem esse rumo. A impressão que eu tenho de mim mesmo é essa, uma pessoa calma e controlada, mas reprimida e que não teve lugar para depositar toda a ira que carregou dentro de si. Foi aí que eu surgi.
- Você está dizendo que necessitou partir seu ego por causa de um trauma? – Eu não consegui compreender muito bem essa parte. Eu também sofrera essa perda, também tive que lidar com todo o sofrimento causado pela morte de alguém próximo. Depois disso ainda tive que tomar as rédeas da situação e tomar conta de tudo em casa quando minha mãe resolveu pirar e eu não precisei me dividir em duas. Foi difícil, mas tive que superar.
- Eu não sei como sou, Mel. Acontece que costumamos observar as coisas de acordo com nossas próprias experiências e pontos de vista. Eu também não entendo como ele pôde reagir desta forma, mas o fato é que, uma hora ou outra, tudo o que você reprime sai. Como se fosse uma bexiga que não suporta mais ar e estoura.
Acontecia isso às vezes comigo. Eu sou um tipo de pessoa calma, mas às vezes acumulo pequenas coisas que me enraivecem e, de repente, começo a agir como se fosse o Hulk.
- Por que você não chamou a polícia? Quero dizer, você tinha provas suficientes, por que não envolveu as autoridades?
- Porque eu não queria que ele fosse preso. Eu queria vê-lo morrer, queria que confessasse tudo antes de seu suspiro final. Quis olhar bem em seus olhos e me ver refletido neles observando todo o arrependimento por ter me arruinado.
Eu fiquei com medo ao ouvir essas palavras, mas tudo o que fiz foi, ainda deitada, passar meus braços por seu abdome em um abraço meio torto. Eu não gostei de ouvir isso, decididamente não, mas eu estava disposta a fazê-lo mudar. Queria que parasse com essa perseguição inútil, não porque eu não sentia raiva das pessoas que lhe fizeram isso, não porque eu era uma nova versão da Madre Teresa, eu definitivamente não era santa, mas porque todo esse ódio estava claramente lhe fazendo mal. Eu o conhecia há tão pouco tempo e me importava demais com ele. Essa ira dividiu seu ser, cegou seus olhos, o fez cometer um crime e o deixava aflito. Era provável que se conseguisse deixar isso para trás, se conseguisse superar isso poderia tentar ser feliz e, principalmente, ser um só. O meu.
Ele tirou a mão que estava descansando na areia e acariciou meus braços presos em seu corpo.
- Você estaria disposto a me fazer um favor? – Perguntei levantando um pouco a cabeça, repousei-a em seu ombro.
- Isso é tão injusto.
- O que é injusto? – Mirei seus olhos claros com calma.
- Você sabe que fica difícil negar quando você fala assim.
Eu corei um pouco, mas era, de certa forma, bom saber que eu exercia esse tipo de poder sobre ele.
- O que você quer, pequena?
- Quero que você pare.
Ele prendeu a respiração e enrijeceu o corpo, sabia o que eu iria lhe pedir.
- Eu não posso.
- Por que não? Onde está o livre arbítrio? Você tem a escolha, Sam. Não finja que não há opções.
- Não estou fingindo. Para mim, elas não existem.
- Por quê?
- Porque acabei de explicar a você. Sem esse desejo de vingança, eu não existiria. Se eu não sentisse toda essa raiva, não teria porque me criar.
- Eu tenho outra teoria.
- Posso saber qual é? – Ele perguntou usando o sorriso do humor negro novamente.
- Acho que não é por isso que você existe. Não sei se você acredita que vivemos por algum propósito, mas eu fielmente acho que sim. O que quero dizer é que essa sua outra forma de ser vive para você ter o desafio de superar a si mesmo. Todos os dias enfrentamos obstáculos, Sam. O seu é você mesmo. Você existe para provar que em todo o amargo, o doce está lá. Você pode ser o exemplo de bondade em um rio de crueldade e frieza.
Ele riu em deboche.
- Você é doce demais, Mel. Seu nome coube como uma luva. – Ele beijou o topo da minha cabeça.
- Eu só quero o melhor para você.
- Eu sei. E eu quero o mesmo para você.
- Exatamente. – Sorri com perspicácia. – O melhor para mim é você. Inteiro.
Ele suspirou.
- Você sabe que temos essa limitação.
- Mas eu sou egoísta. – Brinquei. – Você pode se dividir, mas eu não aceito. Quero você todo para mim.
Ele me olhou com tristeza. Estava, claramente, mortificado por eu pedir algo que ele não poderia me dar ou, pelo menos, achava que não poderia.
- Eu acho que quando você finalmente resolver isso, vai se libertar de todo esse sofrimento. Não vai mais precisar de outra face para lidar psicologicamente com o que você não pôde lidar. Você precisa superar isso, Sam.
- Eu vou esquecer – ele olhou para mim com sinceridade – quando meu objetivo estiver cumprido.
Eu tremi involuntariamente ao imaginar a real palavra para “objetivo”.
- Você pode esquecer sem isso. Basta dialogar consigo mesmo.
- Como você pode falar como se tivesse tanta certeza?
- Eu tenho fé.
E eu tinha mesmo fé de que poderíamos resolver tudo isso. Já que eu havia entrado na chuva, haveria de me molhar. Não poderia ter levado essa relação aonde chegara esta noite, mas já que tudo já estava feito e acabado, o que me sobrara era buscar soluções possíveis para os problemas.
- Tenho somente uma dúvida.
- Diga.
- Como você espera que isso ajude em alguma coisa? Supondo que eu pare de caçá-los, como terei certeza de que eles também pararão de me procurar? Eu ainda não sei o que eles querem.
- Não faz nem idéia?
- Talvez alguma coisa que meu pai tenha descoberto ou inventado, mas se eu soubesse mais especificamente já poderia ter usado como isca.
- Dá para parar? – Alterei o tom de voz e ele ficou assustado.
- Com o quê?
- Não gosto quando você começa a arquitetar esse tipo de plano. Parece que você tem sempre ações planejadas, tudo premeditado.
- Isso te faz temer?
- De certa forma.
- Eu não seria capaz de machucar você.
- Não duvido, mas é a maneira como você fala...
- Tudo bem, vamos só mudar o assunto. – Ele sorriu e beijou meus cabelos novamente.
- Não vai me ceder o favor? – Eu não iria desistir assim, tão fácil.
- Não posso prometer o que talvez não vá cumprir. – Ele respondeu sério.
- Nem se eu disser que você poderia estar comigo nos momentos em que sai à noite caçando essa gente? Pense bem na troca que está fazendo. – Sorri maliciosamente.
- Você é má.
- Você não viu nada. – Pisquei brincando.
É claro que eu não era uma serial killer, mas gostava de ser um pouco malvada com aqueles que me cercam quando acho que deveriam tomar atitudes certas. Como quando ameacei jogar os cartões de crédito da Rebecca na fogueira se ela não estudasse para a prova de recuperação a qual, se não passasse, perderia o ano. Fora um mal necessário.
- Vamos fazer assim: vou pensar nisso.
- Aceito... Por enquanto.
- Você é uma pimenta. – Ele sorriu divertido e então olhou para mim. – Quer que eu pegue bebidas? Nada com álcool. – Deixou bem claro. Como se eu costumasse beber...
- Tudo bem. – Eu me soltei de seu corpo para que ele pudesse levantar.
- Volto já. – Disse pouco antes de me dar as costas e sumir atrás da grande pedra escura.
Apesar de meio sombria, senti que essa nossa última conversa fora necessária. Agora eu entendia um pouco mais de seu problema e tinha idéias de como poderia ajudar. Nesses momentos, esqueci-me completamente dos apuros pelos quais eu também estava passando.
Como se já não fosse bom o bastante gostar de alguém que não pode ser inteiramente seu e que tem variações inversas de humor de acordo com a hora do dia, também havia o fato de que eu também estava sendo perseguida. Não sei por quem, nem porque, mas estava.
Ao contrário do Sam, eu nunca havia feito mal algum para qualquer pessoa, quero dizer, nada tão ruim que desse motivos para quererem me matar. Se fosse somente a invasão do apartamento nos dias anteriores eu poderia supor que era somente mais algum ladrão em busca de alguma coisa de valor, mas a situação era outra. O ataque ao Felix deixou bem claro que quem estava atrás de mim não estava para brincadeiras. Depois das dúvidas de quem eram essas pessoas e o porquê disso, outras questões também martelavam na minha cabeça: como poderiam ter entrado lá em casa sem arrombar a porta? E por que só não reviraram o quarto da Sofia? Algo muito estranho estava acontecendo.
Em meio a esses pensamentos que eu havia esquecido por algumas horas, mas que agora estavam começando a me incomodar, ouvi um ruído do lado oposto de outra rocha que estava por perto. Não era um barulho muito alto porque só consegui ouvi-lo agora que estava quieta e sozinha. Minha paranóia quis entrar em ação, mas eu preferi relaxar. Na certa, era algum animal se alimentando de restos ou sei lá.
Aproximei-me com cautela da grande rocha ainda mais afastada do local em que estávamos. O barulho ficou mais alto na medida em que eu ficava mais perto. Rodeei a pedra escura e deparei-me com uma cena que não esperava ver nem nos meus piores pesadelos.
Rebecca e Lean estavam deitados na areia se agarrando na maior libido. Ele já estava sem a camisa e ela com a saia toda levantada. Um lapso de bom senso no covil das cobras. Aquela cena fez meu estômago dar uma revirada. Eu nunca esperei que meus melhores amigos que viviam brigando fossem flagrados em uma situação dessas. E, meu Deus, a coisa estava mesmo pegando fogo.
Normalmente, eu ficaria feliz por eles finalmente terem se acertado, mas eu sabia que aquilo não estava certo. Rebecca nunca sequer olhara pro Lean, nem mesmo uma olhadinha, ainda mais ela que é cheia de outras intenções quando o assunto é garotos. Sem contar suas superstições que lhe afirmavam que encostar muito no Lean dava má sorte. Nossa, se ela estivesse certa, teria azar para o resto da vida.
- Ei! – Eu falei alto. – O que pensa que está fazendo?
Lean congelou na mesma hora e tirou as mãos da minha amiga, mas ela continuou esticando suas mãos em direção ao pescoço dele como se nem estivesse me vendo ali.
- Mel! – Ele arregalou muito os olhos e começou a vestir a camisa. – Não é isso que está pensando!
- Você perdeu alguma coisa na garganta dela?
- Não.
- Então é exatamente o que eu estou pensando! Você não tem vergonha?
Ele se afastou dela rapidamente, então ela parou de lutar para continuar o amasso e deitou-se na areia com o rosto virado para o outro lado.
- Ela está bêbada, Lean! Você não devia aproveitar isso para...
- O quê? Não! – Ele chegou mais perto de mim e começou a agitar os braços desesperado. – Você não entende! Ela estava aqui sozinha e quando vim ver o que havia acontecido ela começou a me agarrar, eu juro!
Eu não duvidei dele. Tudo bem que era uma pessoa claramente desajuizada que vestia, agia e falava umas coisas muito loucas, mas sempre fora uma pessoa de pleno respeito, principalmente comigo e com a Becca. Não poderia acusá-lo de embebedá-la para tirar vantagem de sua fragilidade momentânea.
Andei mais alguns passos na areia onde vi o copo que Rebecca estivera segurando quando me encontrei com ela mais cedo. Lean aproximou o nariz do recipiente.
- Eu não sabia que ela estava bêbada. – Ele falou com um poço de tristeza. Estava mesmo cheio de álcool.
- Ela me disse que não tinha! Por que ela mentiria para mim?
- Mel... – Ele usou aquele tom que usam quando vão me dizer algo que não fui capaz de compreender sozinha. – Rebecca já bebeu tanto que não conseguiria distinguir um coquetel com álcool de um sem. A menos que seja algo muito forte, ela nem sente mais o gosto.
- Você está insinuando que aquele cretino deu isso pra ela dizendo que não tinha bebida alcoólica?
- Bem, tenho certeza que ela não mentiria para nós sobre isso. – Lean jogou os ombros para trás.
Meu sangue ferveu em fúria. Eu não poderia acreditar que alguém tivera a coragem de embebedar a Rebecca para fazer não gosto nem de imaginar o quê com ela.
- Dê um banho nela.
- Quê?
- Você precisa molhar a cabeça dela com água fria, talvez ela melhore. – A essa hora Rebecca ainda estava murmurando palavras ininteligíveis perto da areia.
- Ela vai me matar se eu molhar o cabelo dela! – Ele tentou me convencer de que não seria uma boa idéia.
- Ela vai te matar se souber que você a deixou nesse estado.
E eu tinha certeza que ela iria pirar quando soubesse o que tinha feito nos momentos em que estava fora de si.
Lean encostou nela com cautela sabendo que eu ainda estava lá. Carinhosamente, colocou os braços em torno do seu pescoço e a carregou com muito cuidado. Ela começou a beijar seu pescoço, mas ele se desvencilhou e continuou marchando até o banheiro onde Becca e eu conversamos mais cedo.
Eu tentei, mas não pude me controlar. Saí de trás de todas aquelas pedras e avistei o tal Thiago. Um rapaz alto e do tipo atlético que estava conversando animadoramente com outros caras do colégio em volta de uma mesinha de baralho. Não sei de que tipo de jogo estavam participando, mas havia várias garotas com roupas de banho ao redor, bebida e fumaça de cigarro. Era uma vergonha que usassem a praia como cassino.
- O que você estava pensando quando embebedou a Rebecca? Idiota! – Eu gritei com ele quando me aproximei mancando.
Todas as conversas e as risadas pararam na hora e ele se levantou.
- Quem é você? – Ele perguntou quase se desequilibrando. Não estava sóbrio também. – A mamãe dela? – Os outros riram.
- Não, mas percebendo sua idade mental, eu é que deveria perguntar se sua mamãe sabe que você está fora de casa.
Ouvi um povo rindo e vaiando nas costas dele.
- Por que não arruma outro imbecil pra você encher o saco, hein garota?
- Não dá. Nessa festa, só você se encaixa nessa categoria. – Eu dei um sorriso falso e foi aí que ele ficou irritado e resolveu partir para cima de mim.
Eu recuei alguns passos, mas ele pegou uma garrafa de vidro em cima da mesinha e avançou.
- Encoste um dedo nela e estará morto. – Sam ameaçou aparecendo no nada ao meu lado.
- Então ela tem um defensor. – Ele zombou em alto volume. Era bem mais alto que o Sam.
Sam agarrou uma base de madeira que estava enterrada na areia. Ela segurava alguns enfeites com tema praia e era feita de uma madeira muito resistente e moldada em forma cilíndrica de uns oito centímetros de diâmetro. Retirou-a da areia com facilidade e, usando somente as mãos, quebrou-a no meio.
Eu fiquei muito impressionada. Tudo bem que ele tinha músculos salientes e tinha uma aparência bem forte, mas aquilo passou dos limites. Precisaria de um daqueles mestres japoneses que partem tijolos com a testa para poder quebrar aquilo.
Quando olhei ao redor, percebi que não era somente eu que estava boquiaberta. Pude perceber o terror estampado na face dos demais convidados. Todos ficaram calados e de olhos arregalados por alguns segundos que, a mim, pareceram se arrastar para sempre. Thiago olhou para mim e então para o Sam e sentou-se novamente onde estivera minutos atrás, preferiu não desafiá-lo.
À medida em que as conversas voltavam a encher o lugar de barulho, eu coloquei minhas mãos ao redor do antebraço do Sam e o puxei para um canto deserto. Era um pouco apertado demais, mas garantia a privacidade da conversa.
- Você me defendeu! – Eu tentei não alterar o tom, mas estava contrariada.
Ele ficou muito confuso.
- Isso é ruim?
- Eu não preciso que me defendam. – Talvez eu fosse um pouco orgulhosa demais, mas eu não achava que precisava de um fortão para me defender.
- Certo. Da próxima vez, deixo ele te quebrar no meio. – Ele respondeu irritado.
- Tudo bem, vai... Eu não quero ser quebrada no meio... Só não estou acostumada com o que você fez agora.
- Acostume-se. – Ele respondeu ainda contrariado por eu ter reivindicado sua ação defensiva.
Eu deslizei as mãos sobre seu peito rígido e as levei até seu pescoço, ele fechou os olhos.
- Vou me acostumar. – Eu disse sussurrando baixinho tentando desfazer sua expressão fechada.
Na mesma hora ele me encostou mais na parede e apertou seu corpo contra o meu em um beijo explosivo como o anterior. Urgente e sedento, eu simplesmente adorava a maneira como ele me beijava e como me tinha entre seus braços neste tempo em que perdíamos o fôlego. Eu agarrei seus cabelos pretos e lisos e o puxei mais para perto.
Eu me sentia mais encalorada e protegida quando estava acariciando seus lábios de uma maneira urgente, como se aquilo me fosse necessário para viver. Desde que o conheci, eu sentia algo muito diferente a cada vez que o via. A cada vez que ele sorria, sentia meu coração galopar no peito, a cada vez que o tocava, estremecia. Eu agora tinha certeza de que sempre soube que ele era o que eu precisava, mas estava negando isso a mim mesma.
Depois de algum tempo, ele se desgrudou de mim com cautela e se afastou ofegante.
- Quê? – Perguntei ainda meio sem chão quando ele parou.
- Se continuarmos nessa linha – ofegou – terei que tomar uma ducha de água fria daqui a pouco.
Ducha de água fria me lembrou... Rebecca!
- Tenho que ver o que Lean aprontou enquanto dava banho na Rebecca.
- Por que ele está dando banho nela? Você não comentou que eram um casal. – Sam recuperou-se para poder falar.
- Esse é o problema. Eles não são.
Ele ficou um pouco assustado, como não tinha muita experiência com relacionamentos pessoais costumava ficar muito surpreso com a maneira como as coisas evoluíam rapidamente hoje em dia. Esse não era o caso, Rebecca estava bêbada.
- Ela está bêbada. Longa história.
- Foi por isso que foi discutir com aquele cara? – Ele se alterou de novo. – Ótimo. Ele embebeda sua amiga e você acha que a melhor idéia é ir lá enfrentá-lo.
- Claro. Você esperava o quê? Que eu visse tudo acontecer e ficasse de braços cruzados? Eu me preocupo com as outras pessoas, Sam. Não dá pra ver o mundo como se fosse um filme. Ficar observando as coisas sem tomar atitude alguma é o começo do declínio da humanidade.
Ele levantou as sobrancelhas diante da minha resposta um pouco séria demais. Mas isso era o que eu realmente pensava, se todos nós achássemos que “não é problema meu” e ficássemos quietos, nunca iríamos para frente. Ainda seríamos todos servos de nobres mesquinhos na Idade Média. E eu, definitivamente, não iria aceitar que alguém se atrevesse a fazer o que fez com a Rebecca.
- Certo. Eu entendo essa sua personalidade que te faz querer bancar a super mulher e se meter em problemas dos outros, mas seja coerente, Mel. Essa sua característica já te trouxe um pé quebrado, agora também queria aparecer em casa cheia de hematomas? Se aquele cara resolvesse te bater...
- Ele não iria me bater, estava só ameaçando. Ninguém espanca uma garota na frente de umas cinqüenta testemunhas.
- No seu raciocínio. Se alguma vez falhar... Posso não estar lá para quebrar uma decoração horrível para colocar medo.
É, pensando nesse sentido ele estava certo... A decoração estava mesmo horrível. Ele fez um bem para a estética da humanidade quebrando aquela coisa. Deveria fazer o mesmo com o resto.
- Por falar nisso, como você quebrou aquilo?
- Aplicando força com as duas mãos. – Ele zombou.
- Ninguém mais conseguiria fazer.
- Que nada, era muito frágil. – Ele respondeu olhando para outro lado.
Eu o conhecia o bastante para saber que estava tentando me enganar. Não fora somente eu que ficara assustada com isso, mas todos que viram. Sam tinha sim uma força descomunal.
- Ótimo, agora você quer me fazer de idiota.
- Isso seria em vão. – Ele sorriu, mas eu não engoli aquela. Estava só tentando me conquistar.
- O que mais você faz que não quer me contar? Também sabe ficar invisível?
- Seria um bom poder para se ter, não? – Aquele sorriso da piada que só ele é capaz de ouvir brotou novamente em sua face. – Logo vamos ter que ir embora, você não queria dar uma olhada na sua amiga?
- Não pense que escapou dessa conversa. – Eu disse ameaçadoramente antes de me espremer entre o beco e seu corpo para sair dali.
Andei até o banheiro em busca da Rebecca, mas ela não estava lá. Saí chutando garrafas de plástico jogadas na areia com o pé que não estava engessado, não conseguia encontrá-la. Quando olhei ao redor para tentar achar Lean, ele também sumira.
Notei que, aonde quer que eu fosse, as pessoas me seguiam com os olhos, fiquei me perguntando se seria ainda por causa daquelas fofocas no colégio ou pelo último episódio que terminou com o meu acompanhante querendo bancar o super man.
No fundo, eu até tinha achado tudo isso muito divertido. Mesmo não gostando de ser defendida pelos outros, até porque eu mesma tinha essa plena capacidade, foi legal saber que ele se importava comigo. Além do mais, tenho certeza de que isso faria que as pessoas, no futuro, pensassem duas vezes antes de me ameaçar.
- Hey, Petry! – Gritei ao longe quando avistei um tufo de cabelos tão loiros, quase brancos, voando para cá e para lá ao lado do bar.
Ela estava conversando com um rapaz malhado do segundo ano e sorria como um crocodilo prestes a atacar. Todos esses rituais da conquista foram atrapalhados com o meu grito. Ela virou-se com a maior má vontade e sibilou:
- O que você quer, Grizzo? Não está vendo que estou ocupada? – Perguntou em tom mais baixo garantindo-se de que seu acompanhante não a ouvisse.
- Você viu a Rebecca?
- Por que eu iria prestar atenção naquela oxigenada?
Minha vontade foi dar um murro nela, mas simplesmente sorri.
- A menos que você esteja chegando à velhice, esses seus fios prateados são resultados da farmácia também. Você presta atenção em todo mundo, agora me diga, onde está a Rebecca?
Ela afunilou os lábios finos em fúria e respondeu com má vontade.
- Aquele seu amigo esquisito a levou para casa. Mais alguma coisa? – Arregalou os olhos e sorriu com ironia.
- Não. Obrigada.
- E, Melzinha – já estava indo embora quando virei as costas novamente ao ouvir meu nome – quem é aquele que você trouxe?
- Não importa.
- Ele tem algo diferente... Não parece ser normal.
Ela estava tentando me atacar. Era isso o que ela mais gostava de fazer, fazer os outros perderem a paciência.
- Mire-se no espelho e reveja seus conceitos sobre anormalidade.
Funcionou. Ela tinha me irritado, me irritara ao ofender a Rebecca e agora me deixara furiosa ao chamar o Sam de anormal. Claro que ele não seria tão maravilhoso se ele fosse normal, acho que ser diferente é o que nos deixa atraídos à determinada pessoa, mas eu sabia que ela usara a palavra no pior sentido possível. Isso fez meu sangue ferver.
A volta para casa foi tranqüila, achei até mais divertida e tranqüilizante que a ida para a festa. Agora, eu não sentia mais aquela divisão do meu ser entre o que era certo fazer e o que eu queria fazer. Eu já tinha me decidido, decidi por enfrentar os sentimentos que foram inevitáveis de aparecerem e iria arcar com todas as conseqüências que eles poderiam acarretar.
Também estava disposta a arrumar um jeito de consertar as coisas e poder ficar com ele, inteiramente. É claro que eu, de forma alguma, pensava que seria fácil ou menos complicado do que realmente foi, mas acho que a esperança é o primeiro passo de uma grande conquista.
- Não quero que fique preocupada. – Ele disse depois de estacionar a moto no andar subterrâneo. – Já disse que não tive a intenção...
- Eu sei, mas o que podemos fazer?
- Não creio que existam maneiras que me possam fazer voltar atrás.
- Isso significa...? – Perguntei enquanto me movia com dificuldade pela rampa que nos levava ao andar de cima.
- Que o que sinto por você é errado, mas irreversível. – Ele respondeu quando já estávamos no térreo esperando pelo elevador.
Eu gostei de ouvir aquilo.
- E o que planeja fazer sobre isso?
Ele riu alto.
- Isso.
Apoiou meu queixo com o dedo indicador e me beijou levemente. Desta vez, tentou ser mais delicado e menos desejoso, mas eu não conseguia me conter, já estava mordendo seu lábio inferior quando ouvi um pigarro.
Fim da parte 1
Desde que nosso primeiro beijo ocorreu resolvemos ficar parados somente aproveitando a presença um do outro. Estávamos deitados na areia da praia, ainda de frente para o mar e escondidos pela grande rocha que nos separava do resto da festa. Sam estava sentado com as pernas estendidas e eu estava deitada em seu colo protegida por seus braços em um abraço apertado.
Balancei a cabeça em resposta à sua pergunta e ele me abraçou mais forte. Ficamos assim por vários minutos até eu perceber que esse não era o propósito da festa. Tudo bem que ficar agarrada ao Sam e, pela primeira vez em muito tempo, sentir que alguém realmente estava cuidando de mim e não o contrário era muito legal, mas eu o levei naquela festa para nos divertirmos e isso não estava acontecendo. Eu já tinha chorado e o deixado aflito, discutimos e gritamos um com o outro, agora estava tudo bem, mas não significa que isso era divertido.
- Quer dançar? – Perguntei tempos depois.
Ele parou de encarar o mar preocupadamente como se estivesse prevendo algo muito ruim e me olhou.
- Você não pode fazer esforço com o pé.
- Você não está me ajudando. – Respondi calmamente.
- O que você está tentando fazer? – Ele sorriu divertido pela primeira vez na festa.
- Só queria que a gente se divertisse. – Joguei os ombros para trás e olhei para cima onde o rosto dele estava muito perto do meu, mas ao contrário, como quando o homem-aranha beija a Mary Jane.
- Eu estou me divertindo. – Ele respondeu e sorriu para mim. Estava claramente tentando me animar. Era uma boa tática, afinal, não adianta chorar pelo que já foi feito. Eu não poderia, mas estava ali, nutrindo um sentimento por alguém que não podia ser meu por inteiro e, ao mesmo tempo, sendo ameaçada de morte por pessoas que não conheço. O que me restava a fazer era aceitar isso e seguir em frente. Pensar nas minhas escolhas errôneas não adiantaria de nada.
- Não estamos fazendo nada divertido.
- Eu acho divertido mexer nos seus cabelos.
Eu não falei nada. Não iria discutir sobre a visão dele de divertimento. Não é que eu não estava me divertindo, ao contrário, era adorável observar as ondas sendo amparada por seu corpo quente, mas eu estava preocupada em não mostrar a diversão que eu havia lhe prometido.
- Como é para você?
- O quê? – Ele perguntou calmamente ainda mexendo nos cachos do cabelo.
- Como você se sente... Não tendo o controle sobre, você sabe, si mesmo.
Ele, de repente, enrijeceu o corpo e ficou mais sério.
- É muito angustiante. – Respondeu afinal.
- Se importa de me explicar mais? Quero saber o que você sente.
- Você sabe o que eu sinto.
- Não quis dizer com relação a mim. – Expliquei. – Quis dizer com relação a si mesmo.
- Quer mesmo ouvir essa história?
- Quero.
- Nas primeiras vezes em que apareci eu não tinha muita clareza sobre o que estava acontecendo. – Ele suspirou. – Sentia uma raiva profunda e uma sede que não tinha explicação aparente. Foi então que o Cristian decidiu me explicar o que estava havendo comigo.
- O que ele te disse? – Fiz menção de levantar-me para escutar melhor a história, mas ele fez a força contrária e me prendeu deitada em seu colo.
- Que eu não poderia fazer coisas as quais fosse me arrepender depois porque, uma vez feito, não teria volta e talvez eu não seria a pessoa que arcaria com as conseqüências.
- Ele se referiu ao outro Sam.
- Sim. Se eu fizesse qualquer coisa que me colocasse em perigo, talvez não fosse eu que sofreria. Mas isso não me explicava tudo. Isso não me esclarecia os motivos que me levavam a sentir a vontade que eu estava sentindo.
- Que vontade?
- De matar.
Arrepiei quando ouvi essa palavra. Comigo o Sam não parecia agressivo nem raivoso, pelo contrário, tinha um senso de humor negro e gostava de fazer piadinhas e acariciar meus cabelos embora às vezes aplicasse muita força. Mas o fato em questão é que eu o vi quando olhou para o Noah naquele dia segurando um cano, antes que eu esclarecesse que o rapaz não era perigoso seu olhar estava repleto de ódio e não duvidei, em momento algum, que fosse mesmo capaz de feri-lo.
- Eu não sabia o porquê, mas tinha extrema vontade de destruir tudo ao meu redor. – Ele continuou não percebendo minha expressão temerosa.
- E o que o Cristian fez?
- Disse que eu não era assim. Que eu sempre fui uma pessoa concentrada e calma e, quando meus pais morreram, não demonstrei sequer melancolia.
- Como não?
Lembrei-me do dia em que fiquei sabendo da morte do meu pai. Não esqueço a rapidez em que meus joelhos cederam e atingiram o chão antes de eu colocar as mãos sobre o rosto, fechar os olhos e desejar que fosse um pesadelo; que não estava mesmo acontecendo. Sofia era muito pequena, não entendeu tão bem a situação, mas mesmo assim demonstrou sua tristeza enfiando-se dentro do quarto e devorando todos os livros que encontrou buscando esgotar um eventual tempo que sobraria para triturar a morte de alguém que nos viu nascer. O ponto é que mesmo as pessoas mais contidas demonstram, de alguma forma, sentimentos nessa situação.
- Eu não sei direito. Carrego ainda muitas dúvidas sobre a forma com que apareci. O que sei é que tentei controlar a raiva e agir com esperteza. Buscando, sem deixar rastros, os motivos que me levaram àquele estado de raiva. A ira era minha prisão e, aonde quer que eu fosse, não conseguia me desviar dela. Então um dia descobri lugares onde pessoas do tipo das que eu estava procurando gostavam de freqüentar.
- Que tipos de lugares?
- Casas noturnas, cassinos ilegais, corridas informais pelas ruas durante a noite.
- E então? – Eu estava muito concentrada em sua história. Mas ele parecia não perceber que eu estava lá. Embora continuasse acariciando meus cabelos, olhava para o mar como se estivesse recordando, relembrando seu nascimento.
- Fiquei sabendo de um homem, dono de um bar imundo, que tinha o hábito de apresentar as pessoas certas para as pessoas que estavam procurando.
- O que quer dizer?
- Ele tinha um amplo conhecimento no ramo de apresentar pessoas capazes de tudo por um pouco de dinheiro para pessoas que precisassem de serviços sujos como esse. Ele confessou ter marcado uma reunião entre um dos representantes da Companhia e o infeliz que cometeu o crime.
- Por que ele te contaria isso? – Perguntei sabendo que esse não era o tipo de coisa que as pessoas sairiam gritando por aí.
- Eu o obriguei a contar.
Eu não quis imaginar as maneiras que ele usara para tal.
Ele dizia tudo isso sem o mínimo de sentimento, apenas como se estivesse relembrando tempos que, há muito tempo, se passaram. Ouvi as águas turbulentas indo de encontro às rochas na escuridão quando ele deu essa pausa.
- Ele teve que me mostrar os recibos assinados pela Companhia fantasma para que eu acreditasse que ele nunca sequer encontrara e nem sabia a pessoa que encomendou esse crime. Então fui obrigado a procurar pelo outro extremo.
- O assassino. – Deduzi.
- Exato. – Ele engoliu em seco. – Primeiro procurei saber quem era, onde morava e o que mais fizera, quais outros crimes cometera. Descobri que ele estava ligado a uma série de outros assassinatos que pareciam acidentes e que nunca eram levados adiante pela polícia. Investiguei vários deles e percebi que não seguiam uma ordem lógica, portanto deduzi que ele matava as pessoas que era pago para matar. Provavelmente pago por diferentes pessoas. Um imundo.
Eu fiquei horrorizada. Talvez as pessoas tivessem certa razão quando falavam que eu vivia no meu próprio mundo de fantasia, por isso me assustei quando fui trazida tão bruscamente à uma realidade tão fria e crua. Era vergonhoso que alguém se sujeitasse a esse papel. Matar pessoas que nem ao menos conhece, derramar lágrimas de familiares inocentes e causar danos maiores como os danos psicológicos que causara em Sam e tudo isso por causa de notas de papel. É engraçado a maneira como as pessoas acumulam valores à papéis, jóias e objetos que, em pouco prazo, só servirão para enfeitar seu caixão. Quero dizer, não faz sentido ser tão sujo em troca de algo que não lhe acompanhará por muito tempo.
Eu observei Sam por algum tempo, também não era glorioso o que ele havia feito. Usar a violência para combater outra violência não era uma forma de resolver o problema, ao contrário, só aumentaria o terror, efeito bola de neve. É claro que eu não consegui pensar em punições severas o bastante para as pessoas que lhe causaram tanto mal e, pela primeira vez na história, me senti enraivecida o bastante com gente desse tipo. Porém, é muito hipócrita julgar seus crimes de homicídio e castigá-los com assassinato.
- Depois que o encontrei comecei a investigar coisas mais pessoais. O que gostava de fazer, onde costumava ir, seus hábitos, suas preferências.
- Para quê?
- Cristian deixou bem claro que eu não deveria deixar rastros. Eu não me importava de levar a culpa, não me importava de ser capturado, não me importava de morrer. Eu não sentia medo do que minhas ações poderiam fazer.
- Então por quê...
- Porque pensei em mim mesmo, minha outra parte de mim. Uma parte que, talvez, não quisesse que as coisas levassem esse rumo. A impressão que eu tenho de mim mesmo é essa, uma pessoa calma e controlada, mas reprimida e que não teve lugar para depositar toda a ira que carregou dentro de si. Foi aí que eu surgi.
- Você está dizendo que necessitou partir seu ego por causa de um trauma? – Eu não consegui compreender muito bem essa parte. Eu também sofrera essa perda, também tive que lidar com todo o sofrimento causado pela morte de alguém próximo. Depois disso ainda tive que tomar as rédeas da situação e tomar conta de tudo em casa quando minha mãe resolveu pirar e eu não precisei me dividir em duas. Foi difícil, mas tive que superar.
- Eu não sei como sou, Mel. Acontece que costumamos observar as coisas de acordo com nossas próprias experiências e pontos de vista. Eu também não entendo como ele pôde reagir desta forma, mas o fato é que, uma hora ou outra, tudo o que você reprime sai. Como se fosse uma bexiga que não suporta mais ar e estoura.
Acontecia isso às vezes comigo. Eu sou um tipo de pessoa calma, mas às vezes acumulo pequenas coisas que me enraivecem e, de repente, começo a agir como se fosse o Hulk.
- Por que você não chamou a polícia? Quero dizer, você tinha provas suficientes, por que não envolveu as autoridades?
- Porque eu não queria que ele fosse preso. Eu queria vê-lo morrer, queria que confessasse tudo antes de seu suspiro final. Quis olhar bem em seus olhos e me ver refletido neles observando todo o arrependimento por ter me arruinado.
Eu fiquei com medo ao ouvir essas palavras, mas tudo o que fiz foi, ainda deitada, passar meus braços por seu abdome em um abraço meio torto. Eu não gostei de ouvir isso, decididamente não, mas eu estava disposta a fazê-lo mudar. Queria que parasse com essa perseguição inútil, não porque eu não sentia raiva das pessoas que lhe fizeram isso, não porque eu era uma nova versão da Madre Teresa, eu definitivamente não era santa, mas porque todo esse ódio estava claramente lhe fazendo mal. Eu o conhecia há tão pouco tempo e me importava demais com ele. Essa ira dividiu seu ser, cegou seus olhos, o fez cometer um crime e o deixava aflito. Era provável que se conseguisse deixar isso para trás, se conseguisse superar isso poderia tentar ser feliz e, principalmente, ser um só. O meu.
Ele tirou a mão que estava descansando na areia e acariciou meus braços presos em seu corpo.
- Você estaria disposto a me fazer um favor? – Perguntei levantando um pouco a cabeça, repousei-a em seu ombro.
- Isso é tão injusto.
- O que é injusto? – Mirei seus olhos claros com calma.
- Você sabe que fica difícil negar quando você fala assim.
Eu corei um pouco, mas era, de certa forma, bom saber que eu exercia esse tipo de poder sobre ele.
- O que você quer, pequena?
- Quero que você pare.
Ele prendeu a respiração e enrijeceu o corpo, sabia o que eu iria lhe pedir.
- Eu não posso.
- Por que não? Onde está o livre arbítrio? Você tem a escolha, Sam. Não finja que não há opções.
- Não estou fingindo. Para mim, elas não existem.
- Por quê?
- Porque acabei de explicar a você. Sem esse desejo de vingança, eu não existiria. Se eu não sentisse toda essa raiva, não teria porque me criar.
- Eu tenho outra teoria.
- Posso saber qual é? – Ele perguntou usando o sorriso do humor negro novamente.
- Acho que não é por isso que você existe. Não sei se você acredita que vivemos por algum propósito, mas eu fielmente acho que sim. O que quero dizer é que essa sua outra forma de ser vive para você ter o desafio de superar a si mesmo. Todos os dias enfrentamos obstáculos, Sam. O seu é você mesmo. Você existe para provar que em todo o amargo, o doce está lá. Você pode ser o exemplo de bondade em um rio de crueldade e frieza.
Ele riu em deboche.
- Você é doce demais, Mel. Seu nome coube como uma luva. – Ele beijou o topo da minha cabeça.
- Eu só quero o melhor para você.
- Eu sei. E eu quero o mesmo para você.
- Exatamente. – Sorri com perspicácia. – O melhor para mim é você. Inteiro.
Ele suspirou.
- Você sabe que temos essa limitação.
- Mas eu sou egoísta. – Brinquei. – Você pode se dividir, mas eu não aceito. Quero você todo para mim.
Ele me olhou com tristeza. Estava, claramente, mortificado por eu pedir algo que ele não poderia me dar ou, pelo menos, achava que não poderia.
- Eu acho que quando você finalmente resolver isso, vai se libertar de todo esse sofrimento. Não vai mais precisar de outra face para lidar psicologicamente com o que você não pôde lidar. Você precisa superar isso, Sam.
- Eu vou esquecer – ele olhou para mim com sinceridade – quando meu objetivo estiver cumprido.
Eu tremi involuntariamente ao imaginar a real palavra para “objetivo”.
- Você pode esquecer sem isso. Basta dialogar consigo mesmo.
- Como você pode falar como se tivesse tanta certeza?
- Eu tenho fé.
E eu tinha mesmo fé de que poderíamos resolver tudo isso. Já que eu havia entrado na chuva, haveria de me molhar. Não poderia ter levado essa relação aonde chegara esta noite, mas já que tudo já estava feito e acabado, o que me sobrara era buscar soluções possíveis para os problemas.
- Tenho somente uma dúvida.
- Diga.
- Como você espera que isso ajude em alguma coisa? Supondo que eu pare de caçá-los, como terei certeza de que eles também pararão de me procurar? Eu ainda não sei o que eles querem.
- Não faz nem idéia?
- Talvez alguma coisa que meu pai tenha descoberto ou inventado, mas se eu soubesse mais especificamente já poderia ter usado como isca.
- Dá para parar? – Alterei o tom de voz e ele ficou assustado.
- Com o quê?
- Não gosto quando você começa a arquitetar esse tipo de plano. Parece que você tem sempre ações planejadas, tudo premeditado.
- Isso te faz temer?
- De certa forma.
- Eu não seria capaz de machucar você.
- Não duvido, mas é a maneira como você fala...
- Tudo bem, vamos só mudar o assunto. – Ele sorriu e beijou meus cabelos novamente.
- Não vai me ceder o favor? – Eu não iria desistir assim, tão fácil.
- Não posso prometer o que talvez não vá cumprir. – Ele respondeu sério.
- Nem se eu disser que você poderia estar comigo nos momentos em que sai à noite caçando essa gente? Pense bem na troca que está fazendo. – Sorri maliciosamente.
- Você é má.
- Você não viu nada. – Pisquei brincando.
É claro que eu não era uma serial killer, mas gostava de ser um pouco malvada com aqueles que me cercam quando acho que deveriam tomar atitudes certas. Como quando ameacei jogar os cartões de crédito da Rebecca na fogueira se ela não estudasse para a prova de recuperação a qual, se não passasse, perderia o ano. Fora um mal necessário.
- Vamos fazer assim: vou pensar nisso.
- Aceito... Por enquanto.
- Você é uma pimenta. – Ele sorriu divertido e então olhou para mim. – Quer que eu pegue bebidas? Nada com álcool. – Deixou bem claro. Como se eu costumasse beber...
- Tudo bem. – Eu me soltei de seu corpo para que ele pudesse levantar.
- Volto já. – Disse pouco antes de me dar as costas e sumir atrás da grande pedra escura.
Apesar de meio sombria, senti que essa nossa última conversa fora necessária. Agora eu entendia um pouco mais de seu problema e tinha idéias de como poderia ajudar. Nesses momentos, esqueci-me completamente dos apuros pelos quais eu também estava passando.
Como se já não fosse bom o bastante gostar de alguém que não pode ser inteiramente seu e que tem variações inversas de humor de acordo com a hora do dia, também havia o fato de que eu também estava sendo perseguida. Não sei por quem, nem porque, mas estava.
Ao contrário do Sam, eu nunca havia feito mal algum para qualquer pessoa, quero dizer, nada tão ruim que desse motivos para quererem me matar. Se fosse somente a invasão do apartamento nos dias anteriores eu poderia supor que era somente mais algum ladrão em busca de alguma coisa de valor, mas a situação era outra. O ataque ao Felix deixou bem claro que quem estava atrás de mim não estava para brincadeiras. Depois das dúvidas de quem eram essas pessoas e o porquê disso, outras questões também martelavam na minha cabeça: como poderiam ter entrado lá em casa sem arrombar a porta? E por que só não reviraram o quarto da Sofia? Algo muito estranho estava acontecendo.
Em meio a esses pensamentos que eu havia esquecido por algumas horas, mas que agora estavam começando a me incomodar, ouvi um ruído do lado oposto de outra rocha que estava por perto. Não era um barulho muito alto porque só consegui ouvi-lo agora que estava quieta e sozinha. Minha paranóia quis entrar em ação, mas eu preferi relaxar. Na certa, era algum animal se alimentando de restos ou sei lá.
Aproximei-me com cautela da grande rocha ainda mais afastada do local em que estávamos. O barulho ficou mais alto na medida em que eu ficava mais perto. Rodeei a pedra escura e deparei-me com uma cena que não esperava ver nem nos meus piores pesadelos.
Rebecca e Lean estavam deitados na areia se agarrando na maior libido. Ele já estava sem a camisa e ela com a saia toda levantada. Um lapso de bom senso no covil das cobras. Aquela cena fez meu estômago dar uma revirada. Eu nunca esperei que meus melhores amigos que viviam brigando fossem flagrados em uma situação dessas. E, meu Deus, a coisa estava mesmo pegando fogo.
Normalmente, eu ficaria feliz por eles finalmente terem se acertado, mas eu sabia que aquilo não estava certo. Rebecca nunca sequer olhara pro Lean, nem mesmo uma olhadinha, ainda mais ela que é cheia de outras intenções quando o assunto é garotos. Sem contar suas superstições que lhe afirmavam que encostar muito no Lean dava má sorte. Nossa, se ela estivesse certa, teria azar para o resto da vida.
- Ei! – Eu falei alto. – O que pensa que está fazendo?
Lean congelou na mesma hora e tirou as mãos da minha amiga, mas ela continuou esticando suas mãos em direção ao pescoço dele como se nem estivesse me vendo ali.
- Mel! – Ele arregalou muito os olhos e começou a vestir a camisa. – Não é isso que está pensando!
- Você perdeu alguma coisa na garganta dela?
- Não.
- Então é exatamente o que eu estou pensando! Você não tem vergonha?
Ele se afastou dela rapidamente, então ela parou de lutar para continuar o amasso e deitou-se na areia com o rosto virado para o outro lado.
- Ela está bêbada, Lean! Você não devia aproveitar isso para...
- O quê? Não! – Ele chegou mais perto de mim e começou a agitar os braços desesperado. – Você não entende! Ela estava aqui sozinha e quando vim ver o que havia acontecido ela começou a me agarrar, eu juro!
Eu não duvidei dele. Tudo bem que era uma pessoa claramente desajuizada que vestia, agia e falava umas coisas muito loucas, mas sempre fora uma pessoa de pleno respeito, principalmente comigo e com a Becca. Não poderia acusá-lo de embebedá-la para tirar vantagem de sua fragilidade momentânea.
Andei mais alguns passos na areia onde vi o copo que Rebecca estivera segurando quando me encontrei com ela mais cedo. Lean aproximou o nariz do recipiente.
- Eu não sabia que ela estava bêbada. – Ele falou com um poço de tristeza. Estava mesmo cheio de álcool.
- Ela me disse que não tinha! Por que ela mentiria para mim?
- Mel... – Ele usou aquele tom que usam quando vão me dizer algo que não fui capaz de compreender sozinha. – Rebecca já bebeu tanto que não conseguiria distinguir um coquetel com álcool de um sem. A menos que seja algo muito forte, ela nem sente mais o gosto.
- Você está insinuando que aquele cretino deu isso pra ela dizendo que não tinha bebida alcoólica?
- Bem, tenho certeza que ela não mentiria para nós sobre isso. – Lean jogou os ombros para trás.
Meu sangue ferveu em fúria. Eu não poderia acreditar que alguém tivera a coragem de embebedar a Rebecca para fazer não gosto nem de imaginar o quê com ela.
- Dê um banho nela.
- Quê?
- Você precisa molhar a cabeça dela com água fria, talvez ela melhore. – A essa hora Rebecca ainda estava murmurando palavras ininteligíveis perto da areia.
- Ela vai me matar se eu molhar o cabelo dela! – Ele tentou me convencer de que não seria uma boa idéia.
- Ela vai te matar se souber que você a deixou nesse estado.
E eu tinha certeza que ela iria pirar quando soubesse o que tinha feito nos momentos em que estava fora de si.
Lean encostou nela com cautela sabendo que eu ainda estava lá. Carinhosamente, colocou os braços em torno do seu pescoço e a carregou com muito cuidado. Ela começou a beijar seu pescoço, mas ele se desvencilhou e continuou marchando até o banheiro onde Becca e eu conversamos mais cedo.
Eu tentei, mas não pude me controlar. Saí de trás de todas aquelas pedras e avistei o tal Thiago. Um rapaz alto e do tipo atlético que estava conversando animadoramente com outros caras do colégio em volta de uma mesinha de baralho. Não sei de que tipo de jogo estavam participando, mas havia várias garotas com roupas de banho ao redor, bebida e fumaça de cigarro. Era uma vergonha que usassem a praia como cassino.
- O que você estava pensando quando embebedou a Rebecca? Idiota! – Eu gritei com ele quando me aproximei mancando.
Todas as conversas e as risadas pararam na hora e ele se levantou.
- Quem é você? – Ele perguntou quase se desequilibrando. Não estava sóbrio também. – A mamãe dela? – Os outros riram.
- Não, mas percebendo sua idade mental, eu é que deveria perguntar se sua mamãe sabe que você está fora de casa.
Ouvi um povo rindo e vaiando nas costas dele.
- Por que não arruma outro imbecil pra você encher o saco, hein garota?
- Não dá. Nessa festa, só você se encaixa nessa categoria. – Eu dei um sorriso falso e foi aí que ele ficou irritado e resolveu partir para cima de mim.
Eu recuei alguns passos, mas ele pegou uma garrafa de vidro em cima da mesinha e avançou.
- Encoste um dedo nela e estará morto. – Sam ameaçou aparecendo no nada ao meu lado.
- Então ela tem um defensor. – Ele zombou em alto volume. Era bem mais alto que o Sam.
Sam agarrou uma base de madeira que estava enterrada na areia. Ela segurava alguns enfeites com tema praia e era feita de uma madeira muito resistente e moldada em forma cilíndrica de uns oito centímetros de diâmetro. Retirou-a da areia com facilidade e, usando somente as mãos, quebrou-a no meio.
Eu fiquei muito impressionada. Tudo bem que ele tinha músculos salientes e tinha uma aparência bem forte, mas aquilo passou dos limites. Precisaria de um daqueles mestres japoneses que partem tijolos com a testa para poder quebrar aquilo.
Quando olhei ao redor, percebi que não era somente eu que estava boquiaberta. Pude perceber o terror estampado na face dos demais convidados. Todos ficaram calados e de olhos arregalados por alguns segundos que, a mim, pareceram se arrastar para sempre. Thiago olhou para mim e então para o Sam e sentou-se novamente onde estivera minutos atrás, preferiu não desafiá-lo.
À medida em que as conversas voltavam a encher o lugar de barulho, eu coloquei minhas mãos ao redor do antebraço do Sam e o puxei para um canto deserto. Era um pouco apertado demais, mas garantia a privacidade da conversa.
- Você me defendeu! – Eu tentei não alterar o tom, mas estava contrariada.
Ele ficou muito confuso.
- Isso é ruim?
- Eu não preciso que me defendam. – Talvez eu fosse um pouco orgulhosa demais, mas eu não achava que precisava de um fortão para me defender.
- Certo. Da próxima vez, deixo ele te quebrar no meio. – Ele respondeu irritado.
- Tudo bem, vai... Eu não quero ser quebrada no meio... Só não estou acostumada com o que você fez agora.
- Acostume-se. – Ele respondeu ainda contrariado por eu ter reivindicado sua ação defensiva.
Eu deslizei as mãos sobre seu peito rígido e as levei até seu pescoço, ele fechou os olhos.
- Vou me acostumar. – Eu disse sussurrando baixinho tentando desfazer sua expressão fechada.
Na mesma hora ele me encostou mais na parede e apertou seu corpo contra o meu em um beijo explosivo como o anterior. Urgente e sedento, eu simplesmente adorava a maneira como ele me beijava e como me tinha entre seus braços neste tempo em que perdíamos o fôlego. Eu agarrei seus cabelos pretos e lisos e o puxei mais para perto.
Eu me sentia mais encalorada e protegida quando estava acariciando seus lábios de uma maneira urgente, como se aquilo me fosse necessário para viver. Desde que o conheci, eu sentia algo muito diferente a cada vez que o via. A cada vez que ele sorria, sentia meu coração galopar no peito, a cada vez que o tocava, estremecia. Eu agora tinha certeza de que sempre soube que ele era o que eu precisava, mas estava negando isso a mim mesma.
Depois de algum tempo, ele se desgrudou de mim com cautela e se afastou ofegante.
- Quê? – Perguntei ainda meio sem chão quando ele parou.
- Se continuarmos nessa linha – ofegou – terei que tomar uma ducha de água fria daqui a pouco.
Ducha de água fria me lembrou... Rebecca!
- Tenho que ver o que Lean aprontou enquanto dava banho na Rebecca.
- Por que ele está dando banho nela? Você não comentou que eram um casal. – Sam recuperou-se para poder falar.
- Esse é o problema. Eles não são.
Ele ficou um pouco assustado, como não tinha muita experiência com relacionamentos pessoais costumava ficar muito surpreso com a maneira como as coisas evoluíam rapidamente hoje em dia. Esse não era o caso, Rebecca estava bêbada.
- Ela está bêbada. Longa história.
- Foi por isso que foi discutir com aquele cara? – Ele se alterou de novo. – Ótimo. Ele embebeda sua amiga e você acha que a melhor idéia é ir lá enfrentá-lo.
- Claro. Você esperava o quê? Que eu visse tudo acontecer e ficasse de braços cruzados? Eu me preocupo com as outras pessoas, Sam. Não dá pra ver o mundo como se fosse um filme. Ficar observando as coisas sem tomar atitude alguma é o começo do declínio da humanidade.
Ele levantou as sobrancelhas diante da minha resposta um pouco séria demais. Mas isso era o que eu realmente pensava, se todos nós achássemos que “não é problema meu” e ficássemos quietos, nunca iríamos para frente. Ainda seríamos todos servos de nobres mesquinhos na Idade Média. E eu, definitivamente, não iria aceitar que alguém se atrevesse a fazer o que fez com a Rebecca.
- Certo. Eu entendo essa sua personalidade que te faz querer bancar a super mulher e se meter em problemas dos outros, mas seja coerente, Mel. Essa sua característica já te trouxe um pé quebrado, agora também queria aparecer em casa cheia de hematomas? Se aquele cara resolvesse te bater...
- Ele não iria me bater, estava só ameaçando. Ninguém espanca uma garota na frente de umas cinqüenta testemunhas.
- No seu raciocínio. Se alguma vez falhar... Posso não estar lá para quebrar uma decoração horrível para colocar medo.
É, pensando nesse sentido ele estava certo... A decoração estava mesmo horrível. Ele fez um bem para a estética da humanidade quebrando aquela coisa. Deveria fazer o mesmo com o resto.
- Por falar nisso, como você quebrou aquilo?
- Aplicando força com as duas mãos. – Ele zombou.
- Ninguém mais conseguiria fazer.
- Que nada, era muito frágil. – Ele respondeu olhando para outro lado.
Eu o conhecia o bastante para saber que estava tentando me enganar. Não fora somente eu que ficara assustada com isso, mas todos que viram. Sam tinha sim uma força descomunal.
- Ótimo, agora você quer me fazer de idiota.
- Isso seria em vão. – Ele sorriu, mas eu não engoli aquela. Estava só tentando me conquistar.
- O que mais você faz que não quer me contar? Também sabe ficar invisível?
- Seria um bom poder para se ter, não? – Aquele sorriso da piada que só ele é capaz de ouvir brotou novamente em sua face. – Logo vamos ter que ir embora, você não queria dar uma olhada na sua amiga?
- Não pense que escapou dessa conversa. – Eu disse ameaçadoramente antes de me espremer entre o beco e seu corpo para sair dali.
Andei até o banheiro em busca da Rebecca, mas ela não estava lá. Saí chutando garrafas de plástico jogadas na areia com o pé que não estava engessado, não conseguia encontrá-la. Quando olhei ao redor para tentar achar Lean, ele também sumira.
Notei que, aonde quer que eu fosse, as pessoas me seguiam com os olhos, fiquei me perguntando se seria ainda por causa daquelas fofocas no colégio ou pelo último episódio que terminou com o meu acompanhante querendo bancar o super man.
No fundo, eu até tinha achado tudo isso muito divertido. Mesmo não gostando de ser defendida pelos outros, até porque eu mesma tinha essa plena capacidade, foi legal saber que ele se importava comigo. Além do mais, tenho certeza de que isso faria que as pessoas, no futuro, pensassem duas vezes antes de me ameaçar.
- Hey, Petry! – Gritei ao longe quando avistei um tufo de cabelos tão loiros, quase brancos, voando para cá e para lá ao lado do bar.
Ela estava conversando com um rapaz malhado do segundo ano e sorria como um crocodilo prestes a atacar. Todos esses rituais da conquista foram atrapalhados com o meu grito. Ela virou-se com a maior má vontade e sibilou:
- O que você quer, Grizzo? Não está vendo que estou ocupada? – Perguntou em tom mais baixo garantindo-se de que seu acompanhante não a ouvisse.
- Você viu a Rebecca?
- Por que eu iria prestar atenção naquela oxigenada?
Minha vontade foi dar um murro nela, mas simplesmente sorri.
- A menos que você esteja chegando à velhice, esses seus fios prateados são resultados da farmácia também. Você presta atenção em todo mundo, agora me diga, onde está a Rebecca?
Ela afunilou os lábios finos em fúria e respondeu com má vontade.
- Aquele seu amigo esquisito a levou para casa. Mais alguma coisa? – Arregalou os olhos e sorriu com ironia.
- Não. Obrigada.
- E, Melzinha – já estava indo embora quando virei as costas novamente ao ouvir meu nome – quem é aquele que você trouxe?
- Não importa.
- Ele tem algo diferente... Não parece ser normal.
Ela estava tentando me atacar. Era isso o que ela mais gostava de fazer, fazer os outros perderem a paciência.
- Mire-se no espelho e reveja seus conceitos sobre anormalidade.
Funcionou. Ela tinha me irritado, me irritara ao ofender a Rebecca e agora me deixara furiosa ao chamar o Sam de anormal. Claro que ele não seria tão maravilhoso se ele fosse normal, acho que ser diferente é o que nos deixa atraídos à determinada pessoa, mas eu sabia que ela usara a palavra no pior sentido possível. Isso fez meu sangue ferver.
A volta para casa foi tranqüila, achei até mais divertida e tranqüilizante que a ida para a festa. Agora, eu não sentia mais aquela divisão do meu ser entre o que era certo fazer e o que eu queria fazer. Eu já tinha me decidido, decidi por enfrentar os sentimentos que foram inevitáveis de aparecerem e iria arcar com todas as conseqüências que eles poderiam acarretar.
Também estava disposta a arrumar um jeito de consertar as coisas e poder ficar com ele, inteiramente. É claro que eu, de forma alguma, pensava que seria fácil ou menos complicado do que realmente foi, mas acho que a esperança é o primeiro passo de uma grande conquista.
- Não quero que fique preocupada. – Ele disse depois de estacionar a moto no andar subterrâneo. – Já disse que não tive a intenção...
- Eu sei, mas o que podemos fazer?
- Não creio que existam maneiras que me possam fazer voltar atrás.
- Isso significa...? – Perguntei enquanto me movia com dificuldade pela rampa que nos levava ao andar de cima.
- Que o que sinto por você é errado, mas irreversível. – Ele respondeu quando já estávamos no térreo esperando pelo elevador.
Eu gostei de ouvir aquilo.
- E o que planeja fazer sobre isso?
Ele riu alto.
- Isso.
Apoiou meu queixo com o dedo indicador e me beijou levemente. Desta vez, tentou ser mais delicado e menos desejoso, mas eu não conseguia me conter, já estava mordendo seu lábio inferior quando ouvi um pigarro.
Fim da parte 1
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19 comentários:
*_*
Quero maaaais... Posta mais...
Tá perfeito! Parabéns.
aii..eu axo q vo vira o inverso..se demora postar mais....
ta tudão..lindoh.....
arf arf arf ......
adoro!!!
Perfeito cara *----* Simplesmente demais.
ADOREI!!
Maravilhoso com sempre!! *-*
Muitoo bom!!
Posta o próximoo!!
=D
muuuuuuuuito boom.!
maaaaaaaaaaaaaais...
bjs !
Perfeição-não tem outra palavra pra descrever a hisória!!
Posta o próximo logoo
Lindo *.*
DEMAIS
AMEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEI *-*
ohh que gracinha *.*
ameiiii, perfeito!!!!
Perfeiito cara ! *emoção*
só quero ver a cara da Rebecca qndo souber q tava se agarrando com o Lian . azar pro resto da viida +1 KOSOKAOKSKOAKS
Perfeiito cara ! *emoção*
só quero ver a cara da Rebecca qndo souber q tava se agarrando com o Lian . azar pro resto da viida +1 KOSOKAOKSKOAKS
Pigarro de quem??
OMG!!!
Tá ok... eu AMEI INFINITAMENTE esse ! *----------------------------*
lindo----- :D
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