quinta-feira, 7 de maio de 2009
- Sam! – Gritei apavorada com o susto que tinha levado. Senti meu coração disparar em raiva. Odeio me assustar. – Alguém passou um tempão inventando a porta, sabia? Por que não tenta usá-la? – Reclamei alto. Ele riu.
- Desculpa, vi sua irmã saindo... Achei que gostaria de companhia.
Pensei em perguntar como isso lhe impedia de entrar pela porta, mas não quis soar rabugenta com a pessoa que me socorreu ontem. Ajeitei-me no sofá. Dei-me conta de que estava de camisola e levantei um pouco a coberta para esconder melhor o corpo.
- Achei que não queria ter maior contato comigo. – Disse séria.
- Por que pensou isso? – Perguntou enquanto se sentava despreocupado na poltrona vermelha um pouco a frente de onde eu estava.
- Você me ignorou hoje à tarde, se lembra?
Uma expressão de confusão espalhou-se pelo seu rosto durante breves segundos, depois pareceu ter entendido.
- Eu te cumprimentei. – Ele respondeu um pouquinho duvidoso.
- Uhum e desejou melhoras com o pé.
- Então você não foi ignorada.
Fiquei sem palavras por algum tempo. Olhando dessa maneira, ele estava certo. Não foi isso o que eu quis dizer quando falei que fui ignorada, mas explicar a sensação e o olhar de frieza que recebi hoje à tarde seria complicado, sem contar meio mimado.
- Aonde o Dexter foi? – Ele mudou de assunto. Sabia que estava se referindo à minha irmã.
- Passou em um curso no centro de pesquisas. Vai ficar fora à noite por dois meses.
- E como planejava fazer com o pé?
- Não preciso da Sofia, eu iria ficar parada, só.
- Sozinha?
- O que esperava? – Para mim parecia óbvio que era sozinha.
- Que o seu namorado viesse. – Ele respondeu calma e normalmente, como se estivesse comentando sobre a previsão do tempo. Pensei na maneira que ele tinha chegado à errada conclusão de que eu namorava. Depois do último desastre de namoro que tive, acho que vou ficar um bom tempo sem me relacionar com alguém de novo.
- Tem razão. Meu namorado imaginário deve chegar daqui a pouco. – Eu juro que tentava me livrar do sarcasmo, mas era mais forte que eu.
- Você é uma pimenta. – Ele concluiu e me deixou imaginando o que exatamente isso queria dizer.
- Por que afirmou com tanta certeza que estou com alguém?
- As flores. – Ele indicou com a cabeça o vaso de rosas brancas que recebi do Lean esta manhã.
- Isso não dá base para afirmar nada. – Afinal, um vaso de flores pode ter sido mandado por qualquer pessoa, mas disse isso mais para incomodá-lo. Não sei o motivo, mas acho divertido discordar dele.
- Isso quer dizer que estou errado?
- Talvez.
Ele fez uma careta.
- Você não deixa passar uma.
- E a sua namorada? Não se importa com essas suas visitas noturnas no apartamento vizinho?
- Não. – Ele deu de ombros. – Ela é bem liberal.
Eu sabia. O resto da esperança que eu talvez ainda tivesse guardada lá no fundo se esvaiu com as duas últimas frases. Calei-me e passei os minutos seguintes tentando imaginá-la. Pensei se era alta ou baixa, loira ou morena, modelo fotográfica ou de passarela. Na minha cabeça, também quis tentar descobrir se gostava de animais, se era gentil e solidária, o que tinha de especial que o tinha atraído. Me peguei interessada em seus gostos e personalidade sem sequer conhecê-la. Minha mente ainda divagava quando foi interrompida por um ruído. Sam estava se esforçando para segurar o riso, mas não conseguiu.
- O que foi?
- Você fez uma cara de susto, muito engraçada.
Estive tão concentrada na minha imaginação que nem me lembrei de disfarçar a expressão facial e agir com naturalidade.
- Ei, pára de rir de mim! – Reclamei tacando-lhe a primeira almofada que encontrei ao meu alcance. Era a segunda vez em dois dias que ele gargalhava na minha cara. Em um reflexo muito rápido, ele segurou o objeto no ar, foi ligeiramente impressionante.
- Tudo bem, desculpe-me. – Pediu ainda se divertindo. – Mas, se posso perguntar, por que ficou tão assustada? Acha impossível alguém ter se interessado por mim?
- Bem, tem gente pra tudo... – Brinquei. Ele riu e tacou a almofada de volta, eu desviei e ela acertou uma planta que estava atrás de mim.
- Quer chocolate quente? – Ele ofereceu.
- Nesse calor?
- É mesmo. – Ele pareceu ter ficado desapontado com o clima. – Limonada?
- Só se você for plantar limão naquele vaso. – Indiquei aquele vaso tosco com a decoração de margaridas de argila. Eu disse que o sarcasmo era mais forte que eu.
- É, não é uma boa idéia te dar limonada. Vou buscar sorvete lá em cima antes que você fique mais azeda. – Saiu pela porta com um sorriso malicioso nos lábios por ter me dado essa alfinetada. Era um atrevido.
Mal voltei a minha atenção para a tentativa fracassada de assassinar a Kate Lúcia, quando escutei um barulho seco vindo do meu quarto. Logo depois, Sam apareceu no corredor, tinha usado a sacada de novo para descer.
- À essa hora quem inventou a porta está remexendo na cova, sabia? – Informei irritada.
- Assim é mais divertido. – Ele sorriu ao me entregar o pote de sorvete de cereja e uma colher dourada.
- Não vejo como o risco de despencar seis andares pode ser divertido. – Pensei alto.
- Não vou cair. – Ele afirmou com tanta certeza que até me deu medo. Pegou a outra colher dourada que trouxe de seu apartamento e a fincou no pote que eu estava segurando. Sentou-se, desta vez, do meu lado. Estremeci quando o senti tão perto. – E então, o que está acontecendo? – Acenou com a cabeça em direção à tevê.
- Kate Lúcia quase foi morta.
- E por quê? – Parecia estar bem interessado na trama sensacionalista da novela.
- Maria Antonieta a pegou na cama com Rodolfo Augusto por meio de um aviso de Jaime Roberto.
- E por que ela não mata o marido então? Ele que foi infiel. – Ele perguntou enquanto enchia outra colher do sorvete que, ele tinha razão, era muito bom mesmo.
- Porque ela ama o marido. – Para mim se mostrava claro que aniquilar a rival e ficar com o cara só para era o plano mais sensato para uma vilã, mesmo que fosse coisa de novela.
- Mas de quê adianta matar outra pessoa para tê-lo se ele não a ama?
- Como você pode saber se ele não ama?
- Porque um cara apaixonado deveria conseguir ver uma mulher só. Mesmo que não queira, as outras ficam invisíveis. – Ele disse com naturalidade.
Uau, isso me pegou de surpresa. Samuel deveria amar muito a namorada. Acho que é difícil encontrar hoje em dia um homem que acredite no amor. Aliás, mulheres também. No compasso em que o mundo anda, é difícil encontrar qualquer pessoa que acredite que há mais além do interesse e da estética.
- Então par está completo.
- O que quer dizer? – Ele indagou quando observávamos Kate Lúcia indo ferida para o hospital local. Seu sangue era alaranjado e jorrava da perna como que por uma mangueira de incêndio. Imaginei qual o orçamento usado para gravar essa novela.
- Quis dizer que, então, os dois se merecerem já que se Maria Antonieta está disposta a se colocar nesse papel ridículo de víbora em nome do amor, é porque este também não existe para ela.
- Justo. – Levantou os ombros largos e fortes concordando. – Míriam Valeska?
- Irmã maluca da Maria Antonieta.
- Nessa novela só tem nome composto?
- E todos muito bem combinados como pode perceber. – Ironizei. Ele riu, tinha o melhor sorriso do planeta, quando não estava rindo de mim, é claro.
Desviei o olhar da tela para observá-lo melhor, estava distraído com transplante de rim da Kate Lúcia. Percebi que a marca no pescoço dele ainda estava bem feia, ele deveria ter colocado um gelo e não teria ficado assim. Sem pensar direito, passei a ponta dos meus dedos acariciando a pele arroxeada. Ele fechou os olhos e estremeceu. Fiquei surpresa com essa reação. Depois de algum tempo, ele sorriu e virou-se para me olhar.
- Mão congelada.
- Desculpa. – Percebi que a tonta, eu, tinha usado para tocá-lo a mão que poucos minutos atrás estava segurando o pote de sorvete.
- Tudo bem, foi divertido. – Levantei as sobrancelhas em sinal de dúvida. – Arrepiante. – Ele completou.
Aproveitei-me, então, da sua distração momentânea para encostar a mão gelada inteira em seu pescoço. Ri desafiadoramente.
- Agora, isso foi cruel. Você tem sorte por estar com o tornozelo engessado.
Eu iria perguntar o que ele faria se eu não estivesse, mas achei melhor ficar imaginando.
- O que quer fazer agora? – Ele perguntou depois que a novela das sete terminou com a descoberta do plano de Maria Antonieta.
- Não sei... – Quis pensar em algo que pudéssemos fazer a dois e que eu pudesse ficar parada onde estava.
- Que jogar “Você prefere”?
- Como é isso?
- Você prefere comer um mico leão dourado frito ou usar marrom pelo resto da vida?
- O quê? – Perguntei como se ele estivesse louco. – Por que alguém comeria um macaco? E esses daí não estão em extinção?
- Escolha logo.
- Não tem terceira opção?
- Não.
- Comeria o macaco.
- Por quê? – Ele se espantou.
- Porque é passageiro, sem contar que eu não gosto de marrom. E você? Você prefere arrancar a própria perna ou entrar aqui pela porta?
Ele riu.
- É uma escolha difícil a se fazer... – Brincou. – Você prefere se casar com um rico feio ou com um bonito pobre?
- Com o que gostar mais de mim. Você prefere viajar para onde quiser ou poder ter toda a comida que quiser?
- Hum... Acho que viajar. Gosto de lugares novos. Você prefere chocolate ou sorvete?
- Ah, essa foi difícil. Chocolate, acho. Não, sorvete. Ah, sei lá. Qual você prefere?
- Sorvete, mas tem que ser de cereja. Prefere loiros ou morenos?
- Uma mistura, caras pálidos de cabelos escuros. – Respondi automaticamente e, só depois de falar, percebendo que estava olhando para alguém assim. Ele pareceu ter percebido também, então repeti a pergunta para me livrar do constrangimento. – Minha vez. Você prefere garotas de cabelos claros ou escuros?
- Morenas de cabelos e olhos sonhadoramente castanho-claros.
Mirei seus olhos cor de oliva por alguns instantes quando ouvi minha descrição exata. Fiquei meio ofendida com isso, se ele estivesse me cantando era um ótimo hipócrita. Estava falando sobre o falso amor de Rodolfo Augusto por Maria Antonieta e agora, mesmo tendo namorada, estava dizendo essa indireta. Mesmo que tenha sido muito fofa, não era certo. Me senti a Kate Lúcia e, cara, eu não queria terminar no hospital com um rim faltando. Ainda sabendo que não era correto, me perdi nas chamas verdes que seus olhos exalavam.
- Acho melhor... Acho melhor jogarmos outra coisa. – Sugeri quando finalmente consegui desviar e olhar para baixo.
- Certo... – Ele pareceu achar melhor mesmo, nós dois já estávamos levando aquele jogo demais para o lado pessoal. – Cruzadas?
- Vamos! – Achei legal a idéia das Cruzadas, fazia tempo que eu não jogava. É um jogo simples cujo objetivo é usar as letras que são dadas para cruzar palavras em um tabuleiro numerado, bem divertido.
- “Muigal” não é uma palavra. – Reclamei, e com razão.
- Claro que é.
- Então o que significa? – Desafiei-o sabendo que não havia resposta.
- Sei lá, não sou dicionário.
- Ah, tira isso daí e joga logo. – Ele riu da tentativa fracassada de roubar no jogo.
- Você é muito azeda, sabia?
- Sou mesmo. E você é muito atrevido.
- Não sou. – Ele contrariou.
Levantei as sobrancelhas em resposta, não iria discutir, afinal, o conhecia somente há dois dias.
- Sou? – Ele pareceu meio indeciso e mostrou-se meio receoso de eu tê-lo achado inapropriado.
- Como posso saber? Eu mal te conheço.
- Eu me apresentei ontem.
- Saber que seu sorvete favorito é o de cereja não é o que eu chamo de te conhecer.
- Tudo bem, vamos fazer assim. Hoje vou responder qualquer pergunta que me fizer.
- Qualquer uma? – Quis certeza de que ele não iria inventar desculpas depois.
- Qualquer uma. – Ele reafirmou soltando as letras da Cruzadas na mesinha, levantou-se a coluna e recostou-se no sofá.
Tinha tantas perguntas a fazer que tive que refletir por algum tempo qual seria a primeira. Na dúvida, resolvi começar pela mais simples.
- Você disse que mora sozinho com o cachorro.
- Isso não é uma pergunta. – Ele sorriu.
- Me deixa terminar! Por que mora sozinho?
- Porque não tenho com quem morar. – Respondeu em tom normal.
- Onde está sua família? Pais, irmãos...? – Indaguei virando-me para fitá-lo, meu tornozelo doeu um pouco com a mexida.
- Não tenho irmãos e meus pais morreram em um acidente de carro. Meu único parente vivo é o meu avô, que me criou até que eu completasse a maioridade.
Fiquei surpresa, ele compartilhava minha mesma dor, a perda dos pais. Talvez tenha sido essa ligação que me chamou a atenção nele, carregava minha mesma angústia no interior da alma.
- Eu sinto muito. – Disse com sentimento verdadeiro.
- Tudo bem, já faz sete anos. – Respondeu friamente. No fim das contas, não parecia sofrer tanto assim, mas desconfiei que ele só disfarçava muito bem a dor. –Superei isso.
- O mesmo aconteceu comigo... Perdi meu pai há seis anos.
- É mesmo? – Ficou muito interessado.
- Sim, levou um tiro por engano quando passava próximo ao assalto de um banco.
- Também sinto muito, Mel. – Ele acariciou meus cabelos com solidariedade.
- Você trabalha com o quê? – Quis mudar de assunto antes que o papo ficasse muito depressivo. Ao contrário dele, eu não conseguia disfarçar o sofrimento em perder meu pai.
- Não trabalho. – Eu iria perguntar de onde ele tirava dinheiro para viver, mas achei que poderia soar rude e interesseiro. Ele adivinhou a pergunta. – Vivo com a herança que recebi dos meus pais quando completei a maioridade, é o suficiente por algum tempo.
Imaginei que a quantia deveria ser alta já que fazia tanto tempo que eles se foram e o dinheiro ainda durava.
- Mas então como você ocupa seu tempo? – Pensei no que eu faria se não trabalhasse e tivesse o dia todo para fazer o que quisesse. Acho que ficaria louca.
- Eu escrevo.
- Poesias? – Chutei. Ele deu uma risada sarcástica.
- Sou frio demais para a poesia. – Quis fazer uma objeção, não o achava frio, mas ele continuou. – Escrevo contos de terror ou contos policiais. Eu mesmo faço os desenhos também. Estou trabalhando em um livro que quero publicar.
- Se eu comprar um você autografa?
- Claro.
- Você dirige? – Fiz uma pergunta aleatória para continuar a lista. Vislumbrei a escuridão da noite pela sacada, as milhares de luzes da cidade brilhavam ao fundo como se fossem fadinhas voadoras no horizonte. Estava ficando bem tarde, mas eu não queria que ele fosse embora. Ele estranhou a pergunta.
- Claro, quem não dirige?
- Eu. – Eu não sabia se tinha coordenação motora suficiente para controlar um carro. Além do medo, era muita responsabilidade sobre as vidas de todos os pedestres que estivessem em um raio de 10 km.
- Tenho uma moto. Iria te levar ao hospital aquele dia, mas ficaria bem difícil com seu tornozelo do jeito que estava. – Me imaginei andando de moto com a perna para cima, realmente não era uma boa idéia.
- Você não tem medo?
- Do quê?
- De andar de moto, pular sacadas correndo o risco de cair seis andares, fazer essas coisas todas.
- Eu não sinto medo, Mel. – E não pareceu estar brincando quando disse isso.
- Todo mundo tem medo de alguma coisa.
- Eu não.
Não me conformei, haveria de ter alguma coisa. Nunca conheci ninguém que não tivesse medo de nada.
- De nada?
- Não.
- Impossível.
- Do que você tem medo?
Refleti um pouco, eu sabia que tinha medo de muitas coisas, não sabia por onde começar quando a pergunta era, assim, tão objetiva.
- Tenho medo de aranhas, cobras, lagartos, guaxinins... – Foi o que pude pensar com a pergunta tão repentina.
- Guaxinins? – Ele riu debochado. – Que medos tolos.
Quis responder que iria mergulhá-lo em uma piscina de aranhas para ver sua reação, mas achei melhor pensar em outro medo menos idiota.
- Temo o tempo.
- O tempo? – Perguntou interessado.
- Sim. Tenho medo de o tempo acabar e eu chegar lá na frente, olhar para trás e não sentir que valeu à pena. De sentir que foi tudo uma perda de tempo, que eu poderia ter feito mais coisas ou menos coisas, que poderia ter dado valor à quem não dei. Temo me arrepender das escolhas que fiz para a minha vida. Temo morrer sem ter vivido. – Desta vez ele ficou pensativo. Ficou calado por algum tempo.
- Interessante... É uma coisa a refletir. O que mais?
Pensei na coisa que mais me amedrontava diante todas as outras. O que me trazia mais pânico, o que tinha mais poder sobre mim do que eu poderia controlar. Lembrei-me do dia anterior, quando eu fui burra o suficiente para ir em direção ao tiro procurando por Sofia. E não foi um ato de coragem, ao contrário, percebi que fui movida pelo medo. Um temor tão forte que tinha dominado meus pensamentos e me impedido de raciocinar. Aquilo sim era o que eu mais temia.
- Tenho medo que as pessoas que estão à minha volta me deixem, como meu pai me deixou. Medo de ficar sozinha, de perdê-las.
- Eu não tenho ninguém a perder. – Ele respondeu, não com melancolia, mas como se estivesse pensando alto, analisando a própria alma. Seriedade e frieza espantosas.
Achei triste isso, fiquei com vontade de pegar em suas mãos e dizer algo, mas eu provavelmente estragaria tudo dizendo que estaria lá quando ele precisasse de açúcar. Não sou muito boa com palavras de consolação, ninguém me consolou quando perdi meu pai, não aprendi o que se deve dizer nessa situação. Além do fato que o Sam me deixa desconcentrada, não queria criar outro momento constrangedor entre nós. Então somente passei a mão, delicadamente, em seu ombro largo e forte enquanto ele olhava para frente, absorto em pensamentos profundos. Quando sentiu meu toque, virou-se e, brevemente, deu um leve sorriso sem mostrar os dentes.
- Hora de ir dormir.
- Você dorme cedo. – Estranhei.
- Eu não, você. – Corrigiu e, antes que eu pudesse entender o sentido da frase, ele já estava me carregando de novo como se eu fosse uma almofada. Desviou-se da enorme bagunça que se acumulava no chão do meu quarto, não tive tempo de arrumar tudo esta tarde. Deitou-me na cama como um pouco de agressividade, pelo que pude perceber, Sam não era nenhum pouco delicado. Apesar de ser um artista e tal, parece que não tinha controle sobre a própria força. O impacto fez meu pé doer um pouco, mas nem reclamei. Ele me cobriu com um lençol que estava dobrado sobre o criado-mudo.
- Posso fazer só mais uma pergunta? – Lembrei-me da pergunta mais essencial que eu havia esquecido completamente de proferir.
- A última. – Ele respondeu já perto da porta e do interruptor.
- Se não estavam atrás do Sr. Félix, se foi tudo um engano, quem estavam perseguindo?
- Não tenho absoluta certeza, mas creio que seja eu. – Ele respondeu com a naturalidade de quem diz que um mais um é dois.
Fiquei estupefata, o que Sam tinha feito? Por que estava sendo procurado? Quem e por que queriam matá-lo? Essa minha última pergunta a ele tinha aberto milhares de outras portas.
- Por quê? – Perguntei em tom alto e assustado. – Você tem que comunicar a polícia! Isso é sério, Sam, você tem que denunciar, fazer alguma coisa! O que está acontecendo? Por que querem te matar?
- Você prometeu que aquela era a última pergunta. – Ele lembrou sorrindo antes de apagar a luz. Nada vai acontecer comigo.
E ele disse isso com tanta certeza explícita na voz que eu acreditei em suas palavras.
- Ah – disse pouco antes de fechar a porta – eu estava brincando sobre a namorada. Sou frio demais para isso também. Boa noite, Mel. – Saiu em passos de gato, sem fazer barulho algum.
Demorei horas para dormir. Meus pensamentos giravam em círculos na cabeça em torno do nada. Começavam no duvidoso e levavam ao lugar nenhum. As idéias estavam lutando para se sobressaírem umas sobre as outras buscando prioridade na minha mente.
Depois de um tempo, escutei minha mãe e minha irmã chegando e tentando não fazer barulho, mas não adiantava, eu ainda estava acordada. A idéia de que o Sam corria perigo de morte me atordoava totalmente e o fato de não ter namorada, uma coisa boa, não diminuía o desespero que senti ao imaginá-lo ferido.
Eu não tinha certeza se estava apaixonada, mas era a primeira vez que alguém que eu conhecia há tão pouco tempo me deslumbrava dessa maneira avassaladora. Apesar de Sam ser tão divertido, havia uma angústia e certo ódio escondidos por trás dos olhos esmeralda. Havia perigo, imprevisto, uma emoção nova, algo que quebrava a rotina em que eu não agüentava mais bancar a base do equilíbrio de tensões em minha casa. Embora amasse muito a minha irmã, não tolerava mais tentar ser sua mãe substituta, assim como não tolerava mais cuidar da casa sozinha porque Sarah estava deprimida demais para seguir em frente e colaborar com a situação, afinal, a morte do meu pai não fora difícil só para ela. A expectativa de aventura que Samuel carregava em seus olhos me hipnotizava por completo e eu precisava daquele olhar, estava viciada.
A possibilidade do risco que ele corria me aterrorizava de uma maneira que não achei que fosse possível, ao mesmo tempo, a probabilidade do perigo excitava meus pensamentos, e minha imaginação sobre os motivos que levaram à sua perseguição fazia meu sangue correr mais rápido. Afinal, eu não sabia porque queriam matá-lo, eu não o conhecia tão a fundo e nem sabia do que era capaz. Ele poderia ser um criminoso, poderia ter matado alguém, isso explicaria o motivo de não ter ido à polícia, mas a possibilidade de ele ser um assassino não me trazia medo, ao contrário da possibilidade de perdê-lo.
Quando o sono finalmente veio, o pesadelo o acompanhou. Imagens abstratas se misturavam com imagens nítidas de sangue espalhado por um corredor de pedra. Contemplei, não Samuel, mas meu próprio corpo estirado sobre o chão frio e molhado na escuridão. Estava sozinha, como do jeito que sempre temi morrer, deitada sobre meu próprio sangue, mas a satisfação se mostrava em minha face. Eu não parecia nenhum pouco chateada com o ataque. Depois a imagem, como que colada em um álbum de fotografias, transformou-se em outra desbotada onde pude ver, desta vez, Sam preso dentro de uma espécie de jaula metálica. Feridas profundas eram visíveis em suas costas e em seu peito descoberto. Ele segurava nas grades com uma expressão de terror profundo, como disse ser incapaz de sentir. Fiquei mais apavorada com essa segunda figura que com a primeira. Depois dessa, várias outras se passaram, misturando o real e o absurdo de uma maneira obscura.
A figura de uma cobra que corria atrás da própria cauda materializou-se em minha mente. O réptil ficava mais rápido a cada segundo sendo possível observar, no fim, apenas uma fumaça amarela em forma de anel. A criatura rastejante, então, cravou a as próprias presas em si mesma antes de me dizer com um sussurro seco e áspero:
- Mel, você precisa fazer alguma coisa.
Então a fumaça foi lentamente sumindo em meio ao calabouço em que a cobra antes se encontrava. Abri os olhos com vagareza para encarar minha irmã com o rosto logo acima do meu.
- Acorda, anda!
- Que foi? – Podia ver o rosto infantil embaçado.
- Você não acordou com o despertador! Chamei por você trinta e oito vezes e não reagiu. Sarah se irritou com o atraso e foi embora!
- A cobra... sumiu. – Tentei explicar, mas minha voz estava muito rouca.
- Vamos perder a aula. Você precisa fazer alguma coisa!
- Ela me disse isso, tinha uma jaula... Sangue, um macaco.
Senti uma mão pequena e fria tocando a pele da minha testa.
- Febre. – Ouvi passos se afastando e, logo em seguida, retornando. – Toma isso. – Minha boca foi aberta à força um líquido amargo se esparramou pela minha garganta. – Isso deve fazer melhorar, volte a dormir. – E ela sumiu de vez.
Segui o conselho da cobra e fechei os olhos novamente. Pude ver uma porta preta e fechada que se afastava à medida em que eu andava. Corri para encontrá-la e ela aumentou a velocidade na mesma proporção. Não consegui alcançá-la. Fiquei correndo durante horas a fim de causar nosso encontro. Pessoas conhecidas passavam como borrões à minha volta, mas eu não parava quando as via, tinha que continuar atrás do meu objetivo vital.
Ouvi meu celular tocando, acordei. Cambaleei, ainda meio sonolenta, para fora da cama para poder atendê-lo. Com dificuldade, cheguei à escrivaninha e apanhei o aparelho.
- Alô?
- Mel? – Rebecca perguntou do outro lado da linha.
- Oi, Becca.
- Sua voz está péssima. Nem a reconheci. O que aconteceu? Por que faltou hoje? – Ela perguntou preocupada.
- O quê? – Só me dei conta do horário quando visualizei o relógio roxo na parede do meu quarto. Eu tinha ouvido as palavras da Sofie, mas naquela hora era como se não tivessem feito sentido. – Droga.
- Você perdeu outra prova.
- Perdi a hora. Acho que estive com febre.
- Mas está melhor agora?
- Estou. Escuta, pode me encontrar na biblioteca à tarde? Preciso da matéria de ontem e de hoje.
- Claro! Mas só posso ficar até as cinco, tenho ensaio.
- Certo. Então... – Falei tentando acabar o telefonema.
- É... Até a tarde! – Ela concluiu animada antes de desligar.
Procurei por Sofie no apartamento, ela não estava lá. Já estava ficando muito preocupada quando vi um bilhete pregado na porta do quarto dela. Em uma caligrafia muito fina e milimetricamente grafada, com todas as letras como se estivessem sido escritas com um molde, lia-se:
Fui à escola à pé.
Almoçarei no centro de pesquisas com um colega.
Também passarei a tarde lá.
Volto com Sarah à noite.
Sofia.
Achei que o recado tivesse acabado, mas no fim do papel, em letras minúsculas, ela acrescentara:
Obs.: Em hipótese alguma você tem permissão para entrar no meu quarto.
Tentei imaginar o que poderia estar lá dentro que ela tinha tanto interesse em esconder. Se fosse outra pessoa, eu desconfiaria de drogas ou outras coisas ilícitas, mas sendo a minha irmã, eu sabia que deveria ser um peixe mutante ou um laser desintegrador de batatas. De toda forma, me senti um pouquinho ofendida por ela achar que eu aproveitaria sua ausência para xeretar seu quarto. Como se eu estivesse interessada no que quer que havia lá dentro.
Também fiquei receosa com essa história da Sofia ficar o dia todo fora de casa. Ela nunca tinha ficado tanto tempo sozinha na rua. Não tenho certeza se ela sabe se cuidar, não no sentido físico, mas no social e emocional. Ela é extremamente intolerante, acostumou-se a ficar tempo demais sozinha no quarto e foi adquirindo o hábito de não agüentar certos comportamentos, clichês e costumes humanos que ela não possuía. Ficava, por exemplo, muito irritada quando mascavam chiclete perto de si, quando conversavam ao seu lado ou quando via pessoas se beijando em público. Também odiava o fato da maioria das pessoas perguntarem “ta jóia?” sem se interessarem mesmo com o seu bem-estar. Não tinha senso de sociedade e não acreditava em relacionamentos fora do âmbito familiar, por isso estranhei a palavra “colega”. Imaginei que criatura era essa que, já no primeiro dia de palestra, tinha conseguido um almoço com a Sofia no dia seguinte. A imagem de um robozinho apareceu na minha cabeça. Ri alto sozinha refletindo o quanto tinha sido malvada nesse pensamento, tadinha.
Eram onze e meia, ainda estava cedo para o almoço e, para não me encher de pensamentos torturantes, resolvi achar algo para fazer. Aproveitei esse tempo para organizar meu quarto, imaginando que Sam poderia dar a louca e pular a sacada de novo.
Estava mesmo uma bagunça, suspeitei que as minhas roupas se animam como naquele filme do Toy Story e saem sozinhas do guarda-roupas para brincar de se jogarem quarto a fora. Achei incrível o fato de abrir meu armário e encontrar apenas dez por cento das minhas vestimentas lá dentro. Encontrei um par de meias limpas enfiadas entre o vidro e o metal da janela, rezei para que o Sam não tivesse visto isso.
Quando terminei, já era mais de uma hora da tarde e percebi que sentia fome. Peguei um daqueles macarrões instantâneos de copo super fáceis de preparar só adicionando água fervente e comi com pressa. Deveria encontrar Rebecca logo. Pensei como seria difícil chegar ao colégio fantasiada de Capitão Gancho às avessas, mas achei que seria mais simples para a perna se eu fosse de ônibus, mesmo que a escola não ficasse tão longe assim.
Rebecca já estava na biblioteca grande e iluminada quando cheguei, estava escondendo uma revista de moda por trás de um livro de física. Assim, quem a visse, iria achar que ela é interessadíssima em “Princípios da Óptica Geométrica”. Ela desviou os grandes olhos azuis da leitura quando me viu.
- Que coisa feia, faltando na aula.
- Que coisa feia, fingindo estar estudando. – Retruquei a brincadeira.
- Ah, tenho certeza que a Paola Lince é super interessada em – virou o livro para ler o título – Óptica Geométrica. Por falar nela, sabia que ela vêm à cidade?
- Fazer o quê? – Imaginei o que diabos uma celebridade faria naquela cidade. Não era um lugar pequeno, mas também não era grande. Não tinha o que fazer aqui, o máximo de atração que tínhamos eram o cinema e um velho shopping.
- Vai num evento desses de gente rica. Se eu a vir na rua, peço um autógrafo. – Parou de falar da tal Paola para me observar. – E aí? Por que faltou?
Tive que narrar com detalhes tudo o que acontecera à noite. Eu tinha sorte por ter uma amiga que me entendia e em quem eu poderia confiar. Contei-lhe tudo o que fizemos e falamos e também contei, principalmente, os motivos que atrapalharam meu sono e me fizeram faltar no colégio.
- Está me dizendo que vocês comeram sorvete juntos no mesmo pote?
- Sim. – Não achei isso lá grande coisa.
- Isso é praticamente um pedido de namoro!
- Total. – Respondi com ironia. Becca, à vezes, conseguia ser tão exagerada quanto Sofia. Apesar de serem completamente contrárias, tinham esse ponto em comum.
Nessa hora, meu celular tocou e era exatamente a Sofie, deveríamos ter algum tipo de conexão mental, visto que tinha acabado de pensar nela.
- Mellanie, onde você está?
- No colégio, por quê?
- Eu esqueci uma pasta importante lá em casa, queria que você lesse uma anotação para mim. É importante para o que estou fazendo agora.
- Sinto muito, Sofie, não estou em casa.
- Percebi quando liguei lá e ninguém atendeu. – Ela disse com o mesmo tom de quando diz o óbvio. Lembrei de uma informação importante.
- Sofie com quem você está?
- Achei que tinha lido meu recado.
- Eu li.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, certamente não tinha entendido, então, o sentido da minha pergunta. Pude até ouvir sua voz em minha cabeça “Se leu, então por que perguntou?”
- Estou com um colega, como escrevi. – Respondeu novamente com a voz do óbvio. Não entendera que eu queria saber o nome, sobrenome, idade, RG...
- Esse colega tem nome?
- Claro que tem. – Estranhou. – Preciso terminar meu trabalho. Tchau.
E antes que eu pudesse respirar, já tinha desligado. Esse era outro dos problemas de se conviver com ela. Era muito objetiva e, por isso, não entendia a subjetividade expressa nas perguntas.
- Você acha que ele matou alguém? – Rebecca perguntou retomando o assunto do Sam.
- Não sei... Mas há essa chance.
- Ele pode ser um criminoso fugitivo também. – Ela sugeriu receosa. Eu ri.
- Isso não. Se ele fosse um fugitivo, seria procurado pela polícia e não por um retardado mental que só percebe que invadiu o apartamento errado depois que já atirou.
- Então por que iriam querer o Sam morto?
- Sei lá, ele pode ter denunciado algum crime ou pode ter sido testemunha de um. – É claro que eu queria acreditar que ele não era um delinqüente.
- Ele pode ser traficante. – Rebecca não me ajudava.
- Que mora sozinho com um cachorro em um apartamento de luxo? As coisas evoluíram.
- Ele deve ter muita grana...
- De herança da morte dos pais. – Recordei-lhe.
- Herança não compra aquele apartamento.
Verdade que o apartamento em que morávamos valia muito dinheiro. Só tínhamos aquilo porque meu pai deixou-o a nós quando morreu. Mamãe custava a sustentá-lo redigindo a coluna de eventos do jornalzinho impopular no qual trabalhava.
- Você não sabe a quantia.
- É, mas ele pode ter mentido. Talvez tenha ganhado o dinheiro vendendo órgãos de garotas inocentes e indefesas no mercado negro. – Que exagero, não acho que paguem tanto assim por um rim.
O mais estranho é que mesmo querendo acreditar que ele não tinha cometido nenhum crime, eu não fiquei com nenhum pouco de medo diante das infinitas – e prováveis – possibilidades ruins. A única coisa que me levava à temer era o fato de ele estar em perigo.
Rebecca percebeu que eu não queria pensar que ele poderia ser, na verdade, um traficante de órgãos humanos e tentou mudar de assunto para descontrair.
- E então, como é...?
- Como é o quê?
- Você sabe... – Ela piscou para mim. Não quis imaginar que significado sórdido essa frase teria.
- Não sei.
- Sabe sim. Quero dizer, alguma hora você deve tê-lo visto de costas...
Entendi o que ela quis dizer e o meu recém entendimento me fez corar. Tudo bem, talvez eu já tenha reparado nesse detalhe, quero dizer, sem querer.
- Como é a... – e procurou palavras apropriadas para usar – A visão traseira do Sam?
- Rebecca, sua desavergonhada! – Esganicei quando a ouvi pedir detalhes minuciosos sobre os atributos do Sam.
- Que foi? É natural olhar isso em um cara, ainda mais se ele for tudo o que você diz! Aliás, você também deve ter visto a frente...
- Rebecca! – Arregalei os olhos. Não a deixei completar essa frase, sou tímida demais para comentar esse tipo de coisa.
- Você fala como se já não tivesse reparado nisso. – Ela disse casualmente enquanto folheava outra revista, desta vez, sobre estilos de cabelos.
Era verdade. Eu já tinha, assim, percebido ao acaso que, como tudo no Sam, os atributos posteriores eram bem interessantes, mas ficar discutindo sobre isso, mesmo com minha melhor amiga, me pareceu muito estranho.
- Você acha que ele vai voltar hoje à noite? – Ela perguntou esperançosa, estava torcendo para eu arrumar logo alguém para termos um encontro duplo que, no caso, seríamos Sam e eu com ela e um caso novo, o Thiago.
É claro que eu estava muito deslumbrada com o Sam, mas namorar era outro papo. Além de ainda não saber exatamente distinguir os sentimentos que ele me causava, de ele ter dito explicitamente que não queria uma namorada e de não saber o que raios ele tinha feito para estar sendo ameaçado de morte, também tinha o fato de estar ainda traumatizada com meu último namoro desastroso.
Era um garoto um pouco mais velho que eu, chamava-se Pedro. Nos conhecemos em uma das poucas festas em que a Patrícia Petry me convidou na época em que já estávamos afastadas e foi por influência – apesar da palavra “insistência” caber exatamente no contexto – dela que ficamos juntos a primeira vez. Eu nunca me apaixonei de verdade eu, pelo menos, acho que não. Tenho essa opinião porque nunca me senti como os livros e filmes descrevem os personagens que amam. Claro que eu já senti desejo e fiquei encantada por alguns caras, como foi o caso do Pedro, mas era tudo passageiro demais. É um sentimento que se esvai aos poucos, talvez a causa disso seja alguma insensibilidade que eu não pensei possuir.
O Pedro foi meu relacionamento mais duradouro, três meses. Não posso colocar toda a responsabilidade do nosso término na frieza que eu já sentia ao final do terceiro mês, mas tenho certeza que sua traição pública com a Cassy Mormette teve grande parcela dessa culpa. Além de se divertir com toda a minha situação de “a idiota traída” e me dizer palavras ofensivas em voz alta, ele também ajudou a Patrícia Petry a espalhar que, depois disso, eu tinha tentado o suicídio. Como se eu achasse que valesse à pena morrer por causa de um imbecil por quem, de acordo com eles, eu ainda era cegamente apaixonada. Incrível como os homens acham o máximo se gabar pelo fato que estão com duas ao mesmo tempo ou que têm várias atrás deles, eu penso que isso é tão desestimulante. Um cara que se vangloria por ser um traidor não tem como ser atraente.
Eu conseguia perceber, nessa época, as risadas e expressões de piedade que as pessoas demonstravam quando eu passava. Elas acreditavam que eu chorava pelos cantos sentindo a falta dele, mas eu não acho que me importei tanto assim. Tive que socar-lhe a face quando ele teve a cara-de-pau de, meses depois, me passar uma cantada para que percebessem finalmente que eu não dava a mínima e que não era apaixonada por aquele retardado. E, como poderia ser, se nunca sequer tinha pensado nele com algo que se assemelhasse a amor?
O que me traumatizou nessa situação desagradável não foi a humilhação pública, eu tinha o emocional demasiadamente forte para me importar com todos os mentecaptas da “panelinha”, quando se sofre com uma perda tão grande como a de um pai e consegue-se superar, você percebe que as outras coisas são tolas demais para merecer seu sofrimento. O que mais me perturbou em tudo isso do Pedro foi o meu medo de ter alguma coisa faltando, de não conseguir me apegar às pessoas, de não ter os sentimentos necessários para amar. Talvez fosse esse o meu maior receio sobre o Sam e sobre qualquer outro cara, tinha medo que me deixassem como fui deixada quando eu tinha onze anos, então preferia me manter fria, como uma maneira de defesa.
- Acho que deveríamos começar a estudar. – Respondi sorrindo quando percebi que Rebecca me analisava, tentando descobrir o motivo da demora da minha resposta. Tínhamos conversado por horas e ainda nem havíamos aberto os cadernos.
Estudamos por durante três horas consecutivas. Eu perdi muita matéria e faltei à duas provas seguidas. O ruim disso é que a prova substitutiva no fim do bimestre é bem mais complicada, mas eu iria conseguir. Nunca tive notas ruins, apesar de não ser, ao contrário de Sofie, um gênio.
Por volta das cinco horas, Rebecca teve que ir ao ensaio e eu fiquei sozinha. Estudei por mais alguns minutos, mas sem ela a concentração se tornava muito mais difícil. Desisti de tentar ignorar minhas indagações e dúvidas sobre o que estava acontecendo e decidi acabar logo com isso da maneira mais simples e objetiva. Juntei meus objetos e embarquei no ônibus que me levaria para casa, onde eu subiria de elevador, bateria na porta do meu vizinho Samuel e o obrigaria a explicar o que está acontecendo.
A viagem de ônibus foi longa e torturante. Agora que Rebecca não estava lá para me distrair, os pensamentos sombrios voltaram a povoar minha cabeça. O sabor da dúvida me era amargo e o nervosismo me fazia bater os dedos freneticamente nos vidros do transporte.
Quando cheguei ao condomínio, eu não queria retardar o encontro, mas tive que passar antes em minha casa para guardar meus objetos escolares. Cruzei a sala na maior rapidez que a perna permitiu e joguei meus livros e cadernos de qualquer jeito na minha cama.Por causa da velocidade, quase tropecei em uma pilha de revistas largada no centro do quarto, além de ter tido que desviar de um monte de roupas, calçados e pastas que estavam fora do lugar. Já estava na metade do corredor do apartamento quando algo me alertou. Uma voz, que reconheci como sendo a minha própria, soou em minha cabeça: “Espera!”.
Como eu já estava tão acostumava com a freqüente bagunça existente no meu quarto, não estranhei nenhum pouco a montanha de coisas jogadas, mas agora que minha consciência tinha me dado o alerta lembrei-me de que arrumara tudo de manhã. Dei a ré no corredor e voltei, então, ao lugar onde estivera segundos atrás. Só aí fiquei perplexa.
Tudo no meu quarto havia sido revirado, absolutamente tudo. Até os meus sapatos não estavam no lugar onde eu os deixara mais cedo. O desespero decaiu sobre mim ao entender que alguém havia invadido o apartamento. Saí do quarto e voltei à sala, que percebi que também estava toda de pernas para o ar. A pressa e o nervosismo não me deixaram perceber isso quando entrei. À medida que fui me locomovendo, notei que tinham mexido na casa toda. A fechadura não tinha sido arrombada. Pensei na única pessoa que conseguia entrar sem passar pela porta. Meu susto, meu susto dobrou ao imaginar essa hipótese.
Saí abrindo todos os armários, guarda-roupas, gavetas, caixas, baús e qualquer lugar que servia para guardar objetos que havia no apartamento. Eu estava tentando descobrir o que havia sido levado, já que era visível que quem revirou tudo estava em busca de algo, mas não senti falta de nada. Apesar de estar tudo bagunçado á décima potência, nada havia sumido.
Eu já iria ligar para a polícia, mas então me perguntei o que responderia quando questionassem o que havia sido furtado. Como denunciar um roubo que não ocorrera? Como delatar uma invasão sem a fechadura violada?
Fechei os olhos tentando raciocinar e planejar meu próximo movimento. Sarah e Sofia iriam enlouquecer quando vissem aquilo e, provavelmente, não acreditariam na minha história. Eu teria que chamar a Rebecca para testemunhar em meu favor e comprovar meu álibi, mas isso levaria a outro problema. Quando elas finalmente acreditassem que eu não tinha dado a louca e não tinha bagunçado tudo de propósito para chamar a atenção ou para irritar, me culpariam por sair de casa sem trancar a porta direito, o que era uma inverdade, mas eu não tinha como provar nada. Resumindo, eu estava ferrada.
Respirei fundo e achei melhor comunicar a portaria, afinal, era inadmissível que um condomínio naquele nível permitisse a entrada de estranhos não-identificados. Era nisso o que eu queria acreditar, que um desconhecido tinha violado minha casa. Peguei o interfone e, tremendo, disquei o número da recepção indicado em uma listinha de emergência.
- Alô, seu João? É a Mellanie.
Seu João era o porteiro do meu prédio, uma pessoa muito doce e agradável, mas extremamente ingênua. Poderia muito bem ter cometido um erro ao deixar um estranho subir.
- Olá Melzinha! Como vai o pé?
- Ah, melhorando, obrigada. – Era uma pessoa que se importava comigo. Eu tinha facilidade ao interagir com adultos ou idosos, ele se agradavam mais facilmente comigo que os jovens de minha idade.
- Que bom! Que bom!
- Escuta, seu João. Alguém diferente subiu ao 501 hoje?
- Não, Mel. Sua irmã e sua mãe saíram cedo e mais ninguém, além de você, subiu aí hoje. Aconteceu alguma coisa? – Ele perguntou preocupado.
- Ninguém sequer procurou pelo apartamento?
- Não, apareceu muita gente aqui hoje, mas não no 501. E eu também não deixaria entrar sabendo que vocês não estavam em casa. O que houve?
- Alguém tem as chaves dos apartamentos? Alguém além dos moradores? O pessoal da limpeza talvez...
- Não, Melzinha. O grupo de faxina só entra quando os inquilinos estão nos apartamentos para permitir a entrada. Ninguém tem as chaves.
- Você ficou na portaria o dia todo, seu João?
- Fiquei sim. Por que está tão alterada?
- Não é nada! – Tentei disfarçar. – Muito obrigada. – Desliguei.
Agora sim estava tudo pior. Além de não ter a porta arrombada, também tinha a realidade de ninguém ter visto nada. Se o porteiro não tinha visto ninguém perguntando e muito menos subindo ao apartamento, significava que as chances de acharem que eu tinha enlouquecido dobraram.
Deixei novamente a sala para contemplar o hall do meu andar. Estava decidida a bater na porta do 601 e armar o barraco caso fosse ignorada. Se o Sam me devia explicações antes, agora me devia o triplo delas. Como a de por que invadira meu apartamento na minha ausência e o que estava procurando. Minha irritação era tamanha que bati a porta com agressividade e uma vizinha enjoada que estava passando, dona Abigail, olhou para mim como se eu fosse uma delinqüente mirim que não tivera limites na infância. Eu não estava nem aí, só queria descontar a minha raiva em alguém e eu sabia quem.
Demorou alguns segundos para que eu vislumbrasse um rosto esculpido à dedo por alguém lá de cima, isso não abalou nem um pouco a raiva que sentia. Ok, talvez um pouquinho.
- Olá Mellanie! – Ele cumprimentou com a doçura de um sorriso quando se espantou com a minha visita surpresa.
- Por que diabos invadiu meu apartamento de novo, sendo que desta vez, na minha ausência? – Fui despejando todas as minhas perguntas acompanhadas de uma colher de ira. - O que estava caçando? É por isso que está sendo procurado? È porque você viola as casas dos outros para mexer em tudo? É por isso que querem te matar?
Observei seus olhos se arregalando a medida que minhas perguntas eram proferidas.
- Mel... Eu não sei do que você está falando.
- Desculpa, vi sua irmã saindo... Achei que gostaria de companhia.
Pensei em perguntar como isso lhe impedia de entrar pela porta, mas não quis soar rabugenta com a pessoa que me socorreu ontem. Ajeitei-me no sofá. Dei-me conta de que estava de camisola e levantei um pouco a coberta para esconder melhor o corpo.
- Achei que não queria ter maior contato comigo. – Disse séria.
- Por que pensou isso? – Perguntou enquanto se sentava despreocupado na poltrona vermelha um pouco a frente de onde eu estava.
- Você me ignorou hoje à tarde, se lembra?
Uma expressão de confusão espalhou-se pelo seu rosto durante breves segundos, depois pareceu ter entendido.
- Eu te cumprimentei. – Ele respondeu um pouquinho duvidoso.
- Uhum e desejou melhoras com o pé.
- Então você não foi ignorada.
Fiquei sem palavras por algum tempo. Olhando dessa maneira, ele estava certo. Não foi isso o que eu quis dizer quando falei que fui ignorada, mas explicar a sensação e o olhar de frieza que recebi hoje à tarde seria complicado, sem contar meio mimado.
- Aonde o Dexter foi? – Ele mudou de assunto. Sabia que estava se referindo à minha irmã.
- Passou em um curso no centro de pesquisas. Vai ficar fora à noite por dois meses.
- E como planejava fazer com o pé?
- Não preciso da Sofia, eu iria ficar parada, só.
- Sozinha?
- O que esperava? – Para mim parecia óbvio que era sozinha.
- Que o seu namorado viesse. – Ele respondeu calma e normalmente, como se estivesse comentando sobre a previsão do tempo. Pensei na maneira que ele tinha chegado à errada conclusão de que eu namorava. Depois do último desastre de namoro que tive, acho que vou ficar um bom tempo sem me relacionar com alguém de novo.
- Tem razão. Meu namorado imaginário deve chegar daqui a pouco. – Eu juro que tentava me livrar do sarcasmo, mas era mais forte que eu.
- Você é uma pimenta. – Ele concluiu e me deixou imaginando o que exatamente isso queria dizer.
- Por que afirmou com tanta certeza que estou com alguém?
- As flores. – Ele indicou com a cabeça o vaso de rosas brancas que recebi do Lean esta manhã.
- Isso não dá base para afirmar nada. – Afinal, um vaso de flores pode ter sido mandado por qualquer pessoa, mas disse isso mais para incomodá-lo. Não sei o motivo, mas acho divertido discordar dele.
- Isso quer dizer que estou errado?
- Talvez.
Ele fez uma careta.
- Você não deixa passar uma.
- E a sua namorada? Não se importa com essas suas visitas noturnas no apartamento vizinho?
- Não. – Ele deu de ombros. – Ela é bem liberal.
Eu sabia. O resto da esperança que eu talvez ainda tivesse guardada lá no fundo se esvaiu com as duas últimas frases. Calei-me e passei os minutos seguintes tentando imaginá-la. Pensei se era alta ou baixa, loira ou morena, modelo fotográfica ou de passarela. Na minha cabeça, também quis tentar descobrir se gostava de animais, se era gentil e solidária, o que tinha de especial que o tinha atraído. Me peguei interessada em seus gostos e personalidade sem sequer conhecê-la. Minha mente ainda divagava quando foi interrompida por um ruído. Sam estava se esforçando para segurar o riso, mas não conseguiu.
- O que foi?
- Você fez uma cara de susto, muito engraçada.
Estive tão concentrada na minha imaginação que nem me lembrei de disfarçar a expressão facial e agir com naturalidade.
- Ei, pára de rir de mim! – Reclamei tacando-lhe a primeira almofada que encontrei ao meu alcance. Era a segunda vez em dois dias que ele gargalhava na minha cara. Em um reflexo muito rápido, ele segurou o objeto no ar, foi ligeiramente impressionante.
- Tudo bem, desculpe-me. – Pediu ainda se divertindo. – Mas, se posso perguntar, por que ficou tão assustada? Acha impossível alguém ter se interessado por mim?
- Bem, tem gente pra tudo... – Brinquei. Ele riu e tacou a almofada de volta, eu desviei e ela acertou uma planta que estava atrás de mim.
- Quer chocolate quente? – Ele ofereceu.
- Nesse calor?
- É mesmo. – Ele pareceu ter ficado desapontado com o clima. – Limonada?
- Só se você for plantar limão naquele vaso. – Indiquei aquele vaso tosco com a decoração de margaridas de argila. Eu disse que o sarcasmo era mais forte que eu.
- É, não é uma boa idéia te dar limonada. Vou buscar sorvete lá em cima antes que você fique mais azeda. – Saiu pela porta com um sorriso malicioso nos lábios por ter me dado essa alfinetada. Era um atrevido.
Mal voltei a minha atenção para a tentativa fracassada de assassinar a Kate Lúcia, quando escutei um barulho seco vindo do meu quarto. Logo depois, Sam apareceu no corredor, tinha usado a sacada de novo para descer.
- À essa hora quem inventou a porta está remexendo na cova, sabia? – Informei irritada.
- Assim é mais divertido. – Ele sorriu ao me entregar o pote de sorvete de cereja e uma colher dourada.
- Não vejo como o risco de despencar seis andares pode ser divertido. – Pensei alto.
- Não vou cair. – Ele afirmou com tanta certeza que até me deu medo. Pegou a outra colher dourada que trouxe de seu apartamento e a fincou no pote que eu estava segurando. Sentou-se, desta vez, do meu lado. Estremeci quando o senti tão perto. – E então, o que está acontecendo? – Acenou com a cabeça em direção à tevê.
- Kate Lúcia quase foi morta.
- E por quê? – Parecia estar bem interessado na trama sensacionalista da novela.
- Maria Antonieta a pegou na cama com Rodolfo Augusto por meio de um aviso de Jaime Roberto.
- E por que ela não mata o marido então? Ele que foi infiel. – Ele perguntou enquanto enchia outra colher do sorvete que, ele tinha razão, era muito bom mesmo.
- Porque ela ama o marido. – Para mim se mostrava claro que aniquilar a rival e ficar com o cara só para era o plano mais sensato para uma vilã, mesmo que fosse coisa de novela.
- Mas de quê adianta matar outra pessoa para tê-lo se ele não a ama?
- Como você pode saber se ele não ama?
- Porque um cara apaixonado deveria conseguir ver uma mulher só. Mesmo que não queira, as outras ficam invisíveis. – Ele disse com naturalidade.
Uau, isso me pegou de surpresa. Samuel deveria amar muito a namorada. Acho que é difícil encontrar hoje em dia um homem que acredite no amor. Aliás, mulheres também. No compasso em que o mundo anda, é difícil encontrar qualquer pessoa que acredite que há mais além do interesse e da estética.
- Então par está completo.
- O que quer dizer? – Ele indagou quando observávamos Kate Lúcia indo ferida para o hospital local. Seu sangue era alaranjado e jorrava da perna como que por uma mangueira de incêndio. Imaginei qual o orçamento usado para gravar essa novela.
- Quis dizer que, então, os dois se merecerem já que se Maria Antonieta está disposta a se colocar nesse papel ridículo de víbora em nome do amor, é porque este também não existe para ela.
- Justo. – Levantou os ombros largos e fortes concordando. – Míriam Valeska?
- Irmã maluca da Maria Antonieta.
- Nessa novela só tem nome composto?
- E todos muito bem combinados como pode perceber. – Ironizei. Ele riu, tinha o melhor sorriso do planeta, quando não estava rindo de mim, é claro.
Desviei o olhar da tela para observá-lo melhor, estava distraído com transplante de rim da Kate Lúcia. Percebi que a marca no pescoço dele ainda estava bem feia, ele deveria ter colocado um gelo e não teria ficado assim. Sem pensar direito, passei a ponta dos meus dedos acariciando a pele arroxeada. Ele fechou os olhos e estremeceu. Fiquei surpresa com essa reação. Depois de algum tempo, ele sorriu e virou-se para me olhar.
- Mão congelada.
- Desculpa. – Percebi que a tonta, eu, tinha usado para tocá-lo a mão que poucos minutos atrás estava segurando o pote de sorvete.
- Tudo bem, foi divertido. – Levantei as sobrancelhas em sinal de dúvida. – Arrepiante. – Ele completou.
Aproveitei-me, então, da sua distração momentânea para encostar a mão gelada inteira em seu pescoço. Ri desafiadoramente.
- Agora, isso foi cruel. Você tem sorte por estar com o tornozelo engessado.
Eu iria perguntar o que ele faria se eu não estivesse, mas achei melhor ficar imaginando.
- O que quer fazer agora? – Ele perguntou depois que a novela das sete terminou com a descoberta do plano de Maria Antonieta.
- Não sei... – Quis pensar em algo que pudéssemos fazer a dois e que eu pudesse ficar parada onde estava.
- Que jogar “Você prefere”?
- Como é isso?
- Você prefere comer um mico leão dourado frito ou usar marrom pelo resto da vida?
- O quê? – Perguntei como se ele estivesse louco. – Por que alguém comeria um macaco? E esses daí não estão em extinção?
- Escolha logo.
- Não tem terceira opção?
- Não.
- Comeria o macaco.
- Por quê? – Ele se espantou.
- Porque é passageiro, sem contar que eu não gosto de marrom. E você? Você prefere arrancar a própria perna ou entrar aqui pela porta?
Ele riu.
- É uma escolha difícil a se fazer... – Brincou. – Você prefere se casar com um rico feio ou com um bonito pobre?
- Com o que gostar mais de mim. Você prefere viajar para onde quiser ou poder ter toda a comida que quiser?
- Hum... Acho que viajar. Gosto de lugares novos. Você prefere chocolate ou sorvete?
- Ah, essa foi difícil. Chocolate, acho. Não, sorvete. Ah, sei lá. Qual você prefere?
- Sorvete, mas tem que ser de cereja. Prefere loiros ou morenos?
- Uma mistura, caras pálidos de cabelos escuros. – Respondi automaticamente e, só depois de falar, percebendo que estava olhando para alguém assim. Ele pareceu ter percebido também, então repeti a pergunta para me livrar do constrangimento. – Minha vez. Você prefere garotas de cabelos claros ou escuros?
- Morenas de cabelos e olhos sonhadoramente castanho-claros.
Mirei seus olhos cor de oliva por alguns instantes quando ouvi minha descrição exata. Fiquei meio ofendida com isso, se ele estivesse me cantando era um ótimo hipócrita. Estava falando sobre o falso amor de Rodolfo Augusto por Maria Antonieta e agora, mesmo tendo namorada, estava dizendo essa indireta. Mesmo que tenha sido muito fofa, não era certo. Me senti a Kate Lúcia e, cara, eu não queria terminar no hospital com um rim faltando. Ainda sabendo que não era correto, me perdi nas chamas verdes que seus olhos exalavam.
- Acho melhor... Acho melhor jogarmos outra coisa. – Sugeri quando finalmente consegui desviar e olhar para baixo.
- Certo... – Ele pareceu achar melhor mesmo, nós dois já estávamos levando aquele jogo demais para o lado pessoal. – Cruzadas?
- Vamos! – Achei legal a idéia das Cruzadas, fazia tempo que eu não jogava. É um jogo simples cujo objetivo é usar as letras que são dadas para cruzar palavras em um tabuleiro numerado, bem divertido.
- “Muigal” não é uma palavra. – Reclamei, e com razão.
- Claro que é.
- Então o que significa? – Desafiei-o sabendo que não havia resposta.
- Sei lá, não sou dicionário.
- Ah, tira isso daí e joga logo. – Ele riu da tentativa fracassada de roubar no jogo.
- Você é muito azeda, sabia?
- Sou mesmo. E você é muito atrevido.
- Não sou. – Ele contrariou.
Levantei as sobrancelhas em resposta, não iria discutir, afinal, o conhecia somente há dois dias.
- Sou? – Ele pareceu meio indeciso e mostrou-se meio receoso de eu tê-lo achado inapropriado.
- Como posso saber? Eu mal te conheço.
- Eu me apresentei ontem.
- Saber que seu sorvete favorito é o de cereja não é o que eu chamo de te conhecer.
- Tudo bem, vamos fazer assim. Hoje vou responder qualquer pergunta que me fizer.
- Qualquer uma? – Quis certeza de que ele não iria inventar desculpas depois.
- Qualquer uma. – Ele reafirmou soltando as letras da Cruzadas na mesinha, levantou-se a coluna e recostou-se no sofá.
Tinha tantas perguntas a fazer que tive que refletir por algum tempo qual seria a primeira. Na dúvida, resolvi começar pela mais simples.
- Você disse que mora sozinho com o cachorro.
- Isso não é uma pergunta. – Ele sorriu.
- Me deixa terminar! Por que mora sozinho?
- Porque não tenho com quem morar. – Respondeu em tom normal.
- Onde está sua família? Pais, irmãos...? – Indaguei virando-me para fitá-lo, meu tornozelo doeu um pouco com a mexida.
- Não tenho irmãos e meus pais morreram em um acidente de carro. Meu único parente vivo é o meu avô, que me criou até que eu completasse a maioridade.
Fiquei surpresa, ele compartilhava minha mesma dor, a perda dos pais. Talvez tenha sido essa ligação que me chamou a atenção nele, carregava minha mesma angústia no interior da alma.
- Eu sinto muito. – Disse com sentimento verdadeiro.
- Tudo bem, já faz sete anos. – Respondeu friamente. No fim das contas, não parecia sofrer tanto assim, mas desconfiei que ele só disfarçava muito bem a dor. –Superei isso.
- O mesmo aconteceu comigo... Perdi meu pai há seis anos.
- É mesmo? – Ficou muito interessado.
- Sim, levou um tiro por engano quando passava próximo ao assalto de um banco.
- Também sinto muito, Mel. – Ele acariciou meus cabelos com solidariedade.
- Você trabalha com o quê? – Quis mudar de assunto antes que o papo ficasse muito depressivo. Ao contrário dele, eu não conseguia disfarçar o sofrimento em perder meu pai.
- Não trabalho. – Eu iria perguntar de onde ele tirava dinheiro para viver, mas achei que poderia soar rude e interesseiro. Ele adivinhou a pergunta. – Vivo com a herança que recebi dos meus pais quando completei a maioridade, é o suficiente por algum tempo.
Imaginei que a quantia deveria ser alta já que fazia tanto tempo que eles se foram e o dinheiro ainda durava.
- Mas então como você ocupa seu tempo? – Pensei no que eu faria se não trabalhasse e tivesse o dia todo para fazer o que quisesse. Acho que ficaria louca.
- Eu escrevo.
- Poesias? – Chutei. Ele deu uma risada sarcástica.
- Sou frio demais para a poesia. – Quis fazer uma objeção, não o achava frio, mas ele continuou. – Escrevo contos de terror ou contos policiais. Eu mesmo faço os desenhos também. Estou trabalhando em um livro que quero publicar.
- Se eu comprar um você autografa?
- Claro.
- Você dirige? – Fiz uma pergunta aleatória para continuar a lista. Vislumbrei a escuridão da noite pela sacada, as milhares de luzes da cidade brilhavam ao fundo como se fossem fadinhas voadoras no horizonte. Estava ficando bem tarde, mas eu não queria que ele fosse embora. Ele estranhou a pergunta.
- Claro, quem não dirige?
- Eu. – Eu não sabia se tinha coordenação motora suficiente para controlar um carro. Além do medo, era muita responsabilidade sobre as vidas de todos os pedestres que estivessem em um raio de 10 km.
- Tenho uma moto. Iria te levar ao hospital aquele dia, mas ficaria bem difícil com seu tornozelo do jeito que estava. – Me imaginei andando de moto com a perna para cima, realmente não era uma boa idéia.
- Você não tem medo?
- Do quê?
- De andar de moto, pular sacadas correndo o risco de cair seis andares, fazer essas coisas todas.
- Eu não sinto medo, Mel. – E não pareceu estar brincando quando disse isso.
- Todo mundo tem medo de alguma coisa.
- Eu não.
Não me conformei, haveria de ter alguma coisa. Nunca conheci ninguém que não tivesse medo de nada.
- De nada?
- Não.
- Impossível.
- Do que você tem medo?
Refleti um pouco, eu sabia que tinha medo de muitas coisas, não sabia por onde começar quando a pergunta era, assim, tão objetiva.
- Tenho medo de aranhas, cobras, lagartos, guaxinins... – Foi o que pude pensar com a pergunta tão repentina.
- Guaxinins? – Ele riu debochado. – Que medos tolos.
Quis responder que iria mergulhá-lo em uma piscina de aranhas para ver sua reação, mas achei melhor pensar em outro medo menos idiota.
- Temo o tempo.
- O tempo? – Perguntou interessado.
- Sim. Tenho medo de o tempo acabar e eu chegar lá na frente, olhar para trás e não sentir que valeu à pena. De sentir que foi tudo uma perda de tempo, que eu poderia ter feito mais coisas ou menos coisas, que poderia ter dado valor à quem não dei. Temo me arrepender das escolhas que fiz para a minha vida. Temo morrer sem ter vivido. – Desta vez ele ficou pensativo. Ficou calado por algum tempo.
- Interessante... É uma coisa a refletir. O que mais?
Pensei na coisa que mais me amedrontava diante todas as outras. O que me trazia mais pânico, o que tinha mais poder sobre mim do que eu poderia controlar. Lembrei-me do dia anterior, quando eu fui burra o suficiente para ir em direção ao tiro procurando por Sofia. E não foi um ato de coragem, ao contrário, percebi que fui movida pelo medo. Um temor tão forte que tinha dominado meus pensamentos e me impedido de raciocinar. Aquilo sim era o que eu mais temia.
- Tenho medo que as pessoas que estão à minha volta me deixem, como meu pai me deixou. Medo de ficar sozinha, de perdê-las.
- Eu não tenho ninguém a perder. – Ele respondeu, não com melancolia, mas como se estivesse pensando alto, analisando a própria alma. Seriedade e frieza espantosas.
Achei triste isso, fiquei com vontade de pegar em suas mãos e dizer algo, mas eu provavelmente estragaria tudo dizendo que estaria lá quando ele precisasse de açúcar. Não sou muito boa com palavras de consolação, ninguém me consolou quando perdi meu pai, não aprendi o que se deve dizer nessa situação. Além do fato que o Sam me deixa desconcentrada, não queria criar outro momento constrangedor entre nós. Então somente passei a mão, delicadamente, em seu ombro largo e forte enquanto ele olhava para frente, absorto em pensamentos profundos. Quando sentiu meu toque, virou-se e, brevemente, deu um leve sorriso sem mostrar os dentes.
- Hora de ir dormir.
- Você dorme cedo. – Estranhei.
- Eu não, você. – Corrigiu e, antes que eu pudesse entender o sentido da frase, ele já estava me carregando de novo como se eu fosse uma almofada. Desviou-se da enorme bagunça que se acumulava no chão do meu quarto, não tive tempo de arrumar tudo esta tarde. Deitou-me na cama como um pouco de agressividade, pelo que pude perceber, Sam não era nenhum pouco delicado. Apesar de ser um artista e tal, parece que não tinha controle sobre a própria força. O impacto fez meu pé doer um pouco, mas nem reclamei. Ele me cobriu com um lençol que estava dobrado sobre o criado-mudo.
- Posso fazer só mais uma pergunta? – Lembrei-me da pergunta mais essencial que eu havia esquecido completamente de proferir.
- A última. – Ele respondeu já perto da porta e do interruptor.
- Se não estavam atrás do Sr. Félix, se foi tudo um engano, quem estavam perseguindo?
- Não tenho absoluta certeza, mas creio que seja eu. – Ele respondeu com a naturalidade de quem diz que um mais um é dois.
Fiquei estupefata, o que Sam tinha feito? Por que estava sendo procurado? Quem e por que queriam matá-lo? Essa minha última pergunta a ele tinha aberto milhares de outras portas.
- Por quê? – Perguntei em tom alto e assustado. – Você tem que comunicar a polícia! Isso é sério, Sam, você tem que denunciar, fazer alguma coisa! O que está acontecendo? Por que querem te matar?
- Você prometeu que aquela era a última pergunta. – Ele lembrou sorrindo antes de apagar a luz. Nada vai acontecer comigo.
E ele disse isso com tanta certeza explícita na voz que eu acreditei em suas palavras.
- Ah – disse pouco antes de fechar a porta – eu estava brincando sobre a namorada. Sou frio demais para isso também. Boa noite, Mel. – Saiu em passos de gato, sem fazer barulho algum.
Demorei horas para dormir. Meus pensamentos giravam em círculos na cabeça em torno do nada. Começavam no duvidoso e levavam ao lugar nenhum. As idéias estavam lutando para se sobressaírem umas sobre as outras buscando prioridade na minha mente.
Depois de um tempo, escutei minha mãe e minha irmã chegando e tentando não fazer barulho, mas não adiantava, eu ainda estava acordada. A idéia de que o Sam corria perigo de morte me atordoava totalmente e o fato de não ter namorada, uma coisa boa, não diminuía o desespero que senti ao imaginá-lo ferido.
Eu não tinha certeza se estava apaixonada, mas era a primeira vez que alguém que eu conhecia há tão pouco tempo me deslumbrava dessa maneira avassaladora. Apesar de Sam ser tão divertido, havia uma angústia e certo ódio escondidos por trás dos olhos esmeralda. Havia perigo, imprevisto, uma emoção nova, algo que quebrava a rotina em que eu não agüentava mais bancar a base do equilíbrio de tensões em minha casa. Embora amasse muito a minha irmã, não tolerava mais tentar ser sua mãe substituta, assim como não tolerava mais cuidar da casa sozinha porque Sarah estava deprimida demais para seguir em frente e colaborar com a situação, afinal, a morte do meu pai não fora difícil só para ela. A expectativa de aventura que Samuel carregava em seus olhos me hipnotizava por completo e eu precisava daquele olhar, estava viciada.
A possibilidade do risco que ele corria me aterrorizava de uma maneira que não achei que fosse possível, ao mesmo tempo, a probabilidade do perigo excitava meus pensamentos, e minha imaginação sobre os motivos que levaram à sua perseguição fazia meu sangue correr mais rápido. Afinal, eu não sabia porque queriam matá-lo, eu não o conhecia tão a fundo e nem sabia do que era capaz. Ele poderia ser um criminoso, poderia ter matado alguém, isso explicaria o motivo de não ter ido à polícia, mas a possibilidade de ele ser um assassino não me trazia medo, ao contrário da possibilidade de perdê-lo.
Quando o sono finalmente veio, o pesadelo o acompanhou. Imagens abstratas se misturavam com imagens nítidas de sangue espalhado por um corredor de pedra. Contemplei, não Samuel, mas meu próprio corpo estirado sobre o chão frio e molhado na escuridão. Estava sozinha, como do jeito que sempre temi morrer, deitada sobre meu próprio sangue, mas a satisfação se mostrava em minha face. Eu não parecia nenhum pouco chateada com o ataque. Depois a imagem, como que colada em um álbum de fotografias, transformou-se em outra desbotada onde pude ver, desta vez, Sam preso dentro de uma espécie de jaula metálica. Feridas profundas eram visíveis em suas costas e em seu peito descoberto. Ele segurava nas grades com uma expressão de terror profundo, como disse ser incapaz de sentir. Fiquei mais apavorada com essa segunda figura que com a primeira. Depois dessa, várias outras se passaram, misturando o real e o absurdo de uma maneira obscura.
A figura de uma cobra que corria atrás da própria cauda materializou-se em minha mente. O réptil ficava mais rápido a cada segundo sendo possível observar, no fim, apenas uma fumaça amarela em forma de anel. A criatura rastejante, então, cravou a as próprias presas em si mesma antes de me dizer com um sussurro seco e áspero:
- Mel, você precisa fazer alguma coisa.
Então a fumaça foi lentamente sumindo em meio ao calabouço em que a cobra antes se encontrava. Abri os olhos com vagareza para encarar minha irmã com o rosto logo acima do meu.
- Acorda, anda!
- Que foi? – Podia ver o rosto infantil embaçado.
- Você não acordou com o despertador! Chamei por você trinta e oito vezes e não reagiu. Sarah se irritou com o atraso e foi embora!
- A cobra... sumiu. – Tentei explicar, mas minha voz estava muito rouca.
- Vamos perder a aula. Você precisa fazer alguma coisa!
- Ela me disse isso, tinha uma jaula... Sangue, um macaco.
Senti uma mão pequena e fria tocando a pele da minha testa.
- Febre. – Ouvi passos se afastando e, logo em seguida, retornando. – Toma isso. – Minha boca foi aberta à força um líquido amargo se esparramou pela minha garganta. – Isso deve fazer melhorar, volte a dormir. – E ela sumiu de vez.
Segui o conselho da cobra e fechei os olhos novamente. Pude ver uma porta preta e fechada que se afastava à medida em que eu andava. Corri para encontrá-la e ela aumentou a velocidade na mesma proporção. Não consegui alcançá-la. Fiquei correndo durante horas a fim de causar nosso encontro. Pessoas conhecidas passavam como borrões à minha volta, mas eu não parava quando as via, tinha que continuar atrás do meu objetivo vital.
Ouvi meu celular tocando, acordei. Cambaleei, ainda meio sonolenta, para fora da cama para poder atendê-lo. Com dificuldade, cheguei à escrivaninha e apanhei o aparelho.
- Alô?
- Mel? – Rebecca perguntou do outro lado da linha.
- Oi, Becca.
- Sua voz está péssima. Nem a reconheci. O que aconteceu? Por que faltou hoje? – Ela perguntou preocupada.
- O quê? – Só me dei conta do horário quando visualizei o relógio roxo na parede do meu quarto. Eu tinha ouvido as palavras da Sofie, mas naquela hora era como se não tivessem feito sentido. – Droga.
- Você perdeu outra prova.
- Perdi a hora. Acho que estive com febre.
- Mas está melhor agora?
- Estou. Escuta, pode me encontrar na biblioteca à tarde? Preciso da matéria de ontem e de hoje.
- Claro! Mas só posso ficar até as cinco, tenho ensaio.
- Certo. Então... – Falei tentando acabar o telefonema.
- É... Até a tarde! – Ela concluiu animada antes de desligar.
Procurei por Sofie no apartamento, ela não estava lá. Já estava ficando muito preocupada quando vi um bilhete pregado na porta do quarto dela. Em uma caligrafia muito fina e milimetricamente grafada, com todas as letras como se estivessem sido escritas com um molde, lia-se:
Fui à escola à pé.
Almoçarei no centro de pesquisas com um colega.
Também passarei a tarde lá.
Volto com Sarah à noite.
Sofia.
Achei que o recado tivesse acabado, mas no fim do papel, em letras minúsculas, ela acrescentara:
Obs.: Em hipótese alguma você tem permissão para entrar no meu quarto.
Tentei imaginar o que poderia estar lá dentro que ela tinha tanto interesse em esconder. Se fosse outra pessoa, eu desconfiaria de drogas ou outras coisas ilícitas, mas sendo a minha irmã, eu sabia que deveria ser um peixe mutante ou um laser desintegrador de batatas. De toda forma, me senti um pouquinho ofendida por ela achar que eu aproveitaria sua ausência para xeretar seu quarto. Como se eu estivesse interessada no que quer que havia lá dentro.
Também fiquei receosa com essa história da Sofia ficar o dia todo fora de casa. Ela nunca tinha ficado tanto tempo sozinha na rua. Não tenho certeza se ela sabe se cuidar, não no sentido físico, mas no social e emocional. Ela é extremamente intolerante, acostumou-se a ficar tempo demais sozinha no quarto e foi adquirindo o hábito de não agüentar certos comportamentos, clichês e costumes humanos que ela não possuía. Ficava, por exemplo, muito irritada quando mascavam chiclete perto de si, quando conversavam ao seu lado ou quando via pessoas se beijando em público. Também odiava o fato da maioria das pessoas perguntarem “ta jóia?” sem se interessarem mesmo com o seu bem-estar. Não tinha senso de sociedade e não acreditava em relacionamentos fora do âmbito familiar, por isso estranhei a palavra “colega”. Imaginei que criatura era essa que, já no primeiro dia de palestra, tinha conseguido um almoço com a Sofia no dia seguinte. A imagem de um robozinho apareceu na minha cabeça. Ri alto sozinha refletindo o quanto tinha sido malvada nesse pensamento, tadinha.
Eram onze e meia, ainda estava cedo para o almoço e, para não me encher de pensamentos torturantes, resolvi achar algo para fazer. Aproveitei esse tempo para organizar meu quarto, imaginando que Sam poderia dar a louca e pular a sacada de novo.
Estava mesmo uma bagunça, suspeitei que as minhas roupas se animam como naquele filme do Toy Story e saem sozinhas do guarda-roupas para brincar de se jogarem quarto a fora. Achei incrível o fato de abrir meu armário e encontrar apenas dez por cento das minhas vestimentas lá dentro. Encontrei um par de meias limpas enfiadas entre o vidro e o metal da janela, rezei para que o Sam não tivesse visto isso.
Quando terminei, já era mais de uma hora da tarde e percebi que sentia fome. Peguei um daqueles macarrões instantâneos de copo super fáceis de preparar só adicionando água fervente e comi com pressa. Deveria encontrar Rebecca logo. Pensei como seria difícil chegar ao colégio fantasiada de Capitão Gancho às avessas, mas achei que seria mais simples para a perna se eu fosse de ônibus, mesmo que a escola não ficasse tão longe assim.
Rebecca já estava na biblioteca grande e iluminada quando cheguei, estava escondendo uma revista de moda por trás de um livro de física. Assim, quem a visse, iria achar que ela é interessadíssima em “Princípios da Óptica Geométrica”. Ela desviou os grandes olhos azuis da leitura quando me viu.
- Que coisa feia, faltando na aula.
- Que coisa feia, fingindo estar estudando. – Retruquei a brincadeira.
- Ah, tenho certeza que a Paola Lince é super interessada em – virou o livro para ler o título – Óptica Geométrica. Por falar nela, sabia que ela vêm à cidade?
- Fazer o quê? – Imaginei o que diabos uma celebridade faria naquela cidade. Não era um lugar pequeno, mas também não era grande. Não tinha o que fazer aqui, o máximo de atração que tínhamos eram o cinema e um velho shopping.
- Vai num evento desses de gente rica. Se eu a vir na rua, peço um autógrafo. – Parou de falar da tal Paola para me observar. – E aí? Por que faltou?
Tive que narrar com detalhes tudo o que acontecera à noite. Eu tinha sorte por ter uma amiga que me entendia e em quem eu poderia confiar. Contei-lhe tudo o que fizemos e falamos e também contei, principalmente, os motivos que atrapalharam meu sono e me fizeram faltar no colégio.
- Está me dizendo que vocês comeram sorvete juntos no mesmo pote?
- Sim. – Não achei isso lá grande coisa.
- Isso é praticamente um pedido de namoro!
- Total. – Respondi com ironia. Becca, à vezes, conseguia ser tão exagerada quanto Sofia. Apesar de serem completamente contrárias, tinham esse ponto em comum.
Nessa hora, meu celular tocou e era exatamente a Sofie, deveríamos ter algum tipo de conexão mental, visto que tinha acabado de pensar nela.
- Mellanie, onde você está?
- No colégio, por quê?
- Eu esqueci uma pasta importante lá em casa, queria que você lesse uma anotação para mim. É importante para o que estou fazendo agora.
- Sinto muito, Sofie, não estou em casa.
- Percebi quando liguei lá e ninguém atendeu. – Ela disse com o mesmo tom de quando diz o óbvio. Lembrei de uma informação importante.
- Sofie com quem você está?
- Achei que tinha lido meu recado.
- Eu li.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, certamente não tinha entendido, então, o sentido da minha pergunta. Pude até ouvir sua voz em minha cabeça “Se leu, então por que perguntou?”
- Estou com um colega, como escrevi. – Respondeu novamente com a voz do óbvio. Não entendera que eu queria saber o nome, sobrenome, idade, RG...
- Esse colega tem nome?
- Claro que tem. – Estranhou. – Preciso terminar meu trabalho. Tchau.
E antes que eu pudesse respirar, já tinha desligado. Esse era outro dos problemas de se conviver com ela. Era muito objetiva e, por isso, não entendia a subjetividade expressa nas perguntas.
- Você acha que ele matou alguém? – Rebecca perguntou retomando o assunto do Sam.
- Não sei... Mas há essa chance.
- Ele pode ser um criminoso fugitivo também. – Ela sugeriu receosa. Eu ri.
- Isso não. Se ele fosse um fugitivo, seria procurado pela polícia e não por um retardado mental que só percebe que invadiu o apartamento errado depois que já atirou.
- Então por que iriam querer o Sam morto?
- Sei lá, ele pode ter denunciado algum crime ou pode ter sido testemunha de um. – É claro que eu queria acreditar que ele não era um delinqüente.
- Ele pode ser traficante. – Rebecca não me ajudava.
- Que mora sozinho com um cachorro em um apartamento de luxo? As coisas evoluíram.
- Ele deve ter muita grana...
- De herança da morte dos pais. – Recordei-lhe.
- Herança não compra aquele apartamento.
Verdade que o apartamento em que morávamos valia muito dinheiro. Só tínhamos aquilo porque meu pai deixou-o a nós quando morreu. Mamãe custava a sustentá-lo redigindo a coluna de eventos do jornalzinho impopular no qual trabalhava.
- Você não sabe a quantia.
- É, mas ele pode ter mentido. Talvez tenha ganhado o dinheiro vendendo órgãos de garotas inocentes e indefesas no mercado negro. – Que exagero, não acho que paguem tanto assim por um rim.
O mais estranho é que mesmo querendo acreditar que ele não tinha cometido nenhum crime, eu não fiquei com nenhum pouco de medo diante das infinitas – e prováveis – possibilidades ruins. A única coisa que me levava à temer era o fato de ele estar em perigo.
Rebecca percebeu que eu não queria pensar que ele poderia ser, na verdade, um traficante de órgãos humanos e tentou mudar de assunto para descontrair.
- E então, como é...?
- Como é o quê?
- Você sabe... – Ela piscou para mim. Não quis imaginar que significado sórdido essa frase teria.
- Não sei.
- Sabe sim. Quero dizer, alguma hora você deve tê-lo visto de costas...
Entendi o que ela quis dizer e o meu recém entendimento me fez corar. Tudo bem, talvez eu já tenha reparado nesse detalhe, quero dizer, sem querer.
- Como é a... – e procurou palavras apropriadas para usar – A visão traseira do Sam?
- Rebecca, sua desavergonhada! – Esganicei quando a ouvi pedir detalhes minuciosos sobre os atributos do Sam.
- Que foi? É natural olhar isso em um cara, ainda mais se ele for tudo o que você diz! Aliás, você também deve ter visto a frente...
- Rebecca! – Arregalei os olhos. Não a deixei completar essa frase, sou tímida demais para comentar esse tipo de coisa.
- Você fala como se já não tivesse reparado nisso. – Ela disse casualmente enquanto folheava outra revista, desta vez, sobre estilos de cabelos.
Era verdade. Eu já tinha, assim, percebido ao acaso que, como tudo no Sam, os atributos posteriores eram bem interessantes, mas ficar discutindo sobre isso, mesmo com minha melhor amiga, me pareceu muito estranho.
- Você acha que ele vai voltar hoje à noite? – Ela perguntou esperançosa, estava torcendo para eu arrumar logo alguém para termos um encontro duplo que, no caso, seríamos Sam e eu com ela e um caso novo, o Thiago.
É claro que eu estava muito deslumbrada com o Sam, mas namorar era outro papo. Além de ainda não saber exatamente distinguir os sentimentos que ele me causava, de ele ter dito explicitamente que não queria uma namorada e de não saber o que raios ele tinha feito para estar sendo ameaçado de morte, também tinha o fato de estar ainda traumatizada com meu último namoro desastroso.
Era um garoto um pouco mais velho que eu, chamava-se Pedro. Nos conhecemos em uma das poucas festas em que a Patrícia Petry me convidou na época em que já estávamos afastadas e foi por influência – apesar da palavra “insistência” caber exatamente no contexto – dela que ficamos juntos a primeira vez. Eu nunca me apaixonei de verdade eu, pelo menos, acho que não. Tenho essa opinião porque nunca me senti como os livros e filmes descrevem os personagens que amam. Claro que eu já senti desejo e fiquei encantada por alguns caras, como foi o caso do Pedro, mas era tudo passageiro demais. É um sentimento que se esvai aos poucos, talvez a causa disso seja alguma insensibilidade que eu não pensei possuir.
O Pedro foi meu relacionamento mais duradouro, três meses. Não posso colocar toda a responsabilidade do nosso término na frieza que eu já sentia ao final do terceiro mês, mas tenho certeza que sua traição pública com a Cassy Mormette teve grande parcela dessa culpa. Além de se divertir com toda a minha situação de “a idiota traída” e me dizer palavras ofensivas em voz alta, ele também ajudou a Patrícia Petry a espalhar que, depois disso, eu tinha tentado o suicídio. Como se eu achasse que valesse à pena morrer por causa de um imbecil por quem, de acordo com eles, eu ainda era cegamente apaixonada. Incrível como os homens acham o máximo se gabar pelo fato que estão com duas ao mesmo tempo ou que têm várias atrás deles, eu penso que isso é tão desestimulante. Um cara que se vangloria por ser um traidor não tem como ser atraente.
Eu conseguia perceber, nessa época, as risadas e expressões de piedade que as pessoas demonstravam quando eu passava. Elas acreditavam que eu chorava pelos cantos sentindo a falta dele, mas eu não acho que me importei tanto assim. Tive que socar-lhe a face quando ele teve a cara-de-pau de, meses depois, me passar uma cantada para que percebessem finalmente que eu não dava a mínima e que não era apaixonada por aquele retardado. E, como poderia ser, se nunca sequer tinha pensado nele com algo que se assemelhasse a amor?
O que me traumatizou nessa situação desagradável não foi a humilhação pública, eu tinha o emocional demasiadamente forte para me importar com todos os mentecaptas da “panelinha”, quando se sofre com uma perda tão grande como a de um pai e consegue-se superar, você percebe que as outras coisas são tolas demais para merecer seu sofrimento. O que mais me perturbou em tudo isso do Pedro foi o meu medo de ter alguma coisa faltando, de não conseguir me apegar às pessoas, de não ter os sentimentos necessários para amar. Talvez fosse esse o meu maior receio sobre o Sam e sobre qualquer outro cara, tinha medo que me deixassem como fui deixada quando eu tinha onze anos, então preferia me manter fria, como uma maneira de defesa.
- Acho que deveríamos começar a estudar. – Respondi sorrindo quando percebi que Rebecca me analisava, tentando descobrir o motivo da demora da minha resposta. Tínhamos conversado por horas e ainda nem havíamos aberto os cadernos.
Estudamos por durante três horas consecutivas. Eu perdi muita matéria e faltei à duas provas seguidas. O ruim disso é que a prova substitutiva no fim do bimestre é bem mais complicada, mas eu iria conseguir. Nunca tive notas ruins, apesar de não ser, ao contrário de Sofie, um gênio.
Por volta das cinco horas, Rebecca teve que ir ao ensaio e eu fiquei sozinha. Estudei por mais alguns minutos, mas sem ela a concentração se tornava muito mais difícil. Desisti de tentar ignorar minhas indagações e dúvidas sobre o que estava acontecendo e decidi acabar logo com isso da maneira mais simples e objetiva. Juntei meus objetos e embarquei no ônibus que me levaria para casa, onde eu subiria de elevador, bateria na porta do meu vizinho Samuel e o obrigaria a explicar o que está acontecendo.
A viagem de ônibus foi longa e torturante. Agora que Rebecca não estava lá para me distrair, os pensamentos sombrios voltaram a povoar minha cabeça. O sabor da dúvida me era amargo e o nervosismo me fazia bater os dedos freneticamente nos vidros do transporte.
Quando cheguei ao condomínio, eu não queria retardar o encontro, mas tive que passar antes em minha casa para guardar meus objetos escolares. Cruzei a sala na maior rapidez que a perna permitiu e joguei meus livros e cadernos de qualquer jeito na minha cama.Por causa da velocidade, quase tropecei em uma pilha de revistas largada no centro do quarto, além de ter tido que desviar de um monte de roupas, calçados e pastas que estavam fora do lugar. Já estava na metade do corredor do apartamento quando algo me alertou. Uma voz, que reconheci como sendo a minha própria, soou em minha cabeça: “Espera!”.
Como eu já estava tão acostumava com a freqüente bagunça existente no meu quarto, não estranhei nenhum pouco a montanha de coisas jogadas, mas agora que minha consciência tinha me dado o alerta lembrei-me de que arrumara tudo de manhã. Dei a ré no corredor e voltei, então, ao lugar onde estivera segundos atrás. Só aí fiquei perplexa.
Tudo no meu quarto havia sido revirado, absolutamente tudo. Até os meus sapatos não estavam no lugar onde eu os deixara mais cedo. O desespero decaiu sobre mim ao entender que alguém havia invadido o apartamento. Saí do quarto e voltei à sala, que percebi que também estava toda de pernas para o ar. A pressa e o nervosismo não me deixaram perceber isso quando entrei. À medida que fui me locomovendo, notei que tinham mexido na casa toda. A fechadura não tinha sido arrombada. Pensei na única pessoa que conseguia entrar sem passar pela porta. Meu susto, meu susto dobrou ao imaginar essa hipótese.
Saí abrindo todos os armários, guarda-roupas, gavetas, caixas, baús e qualquer lugar que servia para guardar objetos que havia no apartamento. Eu estava tentando descobrir o que havia sido levado, já que era visível que quem revirou tudo estava em busca de algo, mas não senti falta de nada. Apesar de estar tudo bagunçado á décima potência, nada havia sumido.
Eu já iria ligar para a polícia, mas então me perguntei o que responderia quando questionassem o que havia sido furtado. Como denunciar um roubo que não ocorrera? Como delatar uma invasão sem a fechadura violada?
Fechei os olhos tentando raciocinar e planejar meu próximo movimento. Sarah e Sofia iriam enlouquecer quando vissem aquilo e, provavelmente, não acreditariam na minha história. Eu teria que chamar a Rebecca para testemunhar em meu favor e comprovar meu álibi, mas isso levaria a outro problema. Quando elas finalmente acreditassem que eu não tinha dado a louca e não tinha bagunçado tudo de propósito para chamar a atenção ou para irritar, me culpariam por sair de casa sem trancar a porta direito, o que era uma inverdade, mas eu não tinha como provar nada. Resumindo, eu estava ferrada.
Respirei fundo e achei melhor comunicar a portaria, afinal, era inadmissível que um condomínio naquele nível permitisse a entrada de estranhos não-identificados. Era nisso o que eu queria acreditar, que um desconhecido tinha violado minha casa. Peguei o interfone e, tremendo, disquei o número da recepção indicado em uma listinha de emergência.
- Alô, seu João? É a Mellanie.
Seu João era o porteiro do meu prédio, uma pessoa muito doce e agradável, mas extremamente ingênua. Poderia muito bem ter cometido um erro ao deixar um estranho subir.
- Olá Melzinha! Como vai o pé?
- Ah, melhorando, obrigada. – Era uma pessoa que se importava comigo. Eu tinha facilidade ao interagir com adultos ou idosos, ele se agradavam mais facilmente comigo que os jovens de minha idade.
- Que bom! Que bom!
- Escuta, seu João. Alguém diferente subiu ao 501 hoje?
- Não, Mel. Sua irmã e sua mãe saíram cedo e mais ninguém, além de você, subiu aí hoje. Aconteceu alguma coisa? – Ele perguntou preocupado.
- Ninguém sequer procurou pelo apartamento?
- Não, apareceu muita gente aqui hoje, mas não no 501. E eu também não deixaria entrar sabendo que vocês não estavam em casa. O que houve?
- Alguém tem as chaves dos apartamentos? Alguém além dos moradores? O pessoal da limpeza talvez...
- Não, Melzinha. O grupo de faxina só entra quando os inquilinos estão nos apartamentos para permitir a entrada. Ninguém tem as chaves.
- Você ficou na portaria o dia todo, seu João?
- Fiquei sim. Por que está tão alterada?
- Não é nada! – Tentei disfarçar. – Muito obrigada. – Desliguei.
Agora sim estava tudo pior. Além de não ter a porta arrombada, também tinha a realidade de ninguém ter visto nada. Se o porteiro não tinha visto ninguém perguntando e muito menos subindo ao apartamento, significava que as chances de acharem que eu tinha enlouquecido dobraram.
Deixei novamente a sala para contemplar o hall do meu andar. Estava decidida a bater na porta do 601 e armar o barraco caso fosse ignorada. Se o Sam me devia explicações antes, agora me devia o triplo delas. Como a de por que invadira meu apartamento na minha ausência e o que estava procurando. Minha irritação era tamanha que bati a porta com agressividade e uma vizinha enjoada que estava passando, dona Abigail, olhou para mim como se eu fosse uma delinqüente mirim que não tivera limites na infância. Eu não estava nem aí, só queria descontar a minha raiva em alguém e eu sabia quem.
Demorou alguns segundos para que eu vislumbrasse um rosto esculpido à dedo por alguém lá de cima, isso não abalou nem um pouco a raiva que sentia. Ok, talvez um pouquinho.
- Olá Mellanie! – Ele cumprimentou com a doçura de um sorriso quando se espantou com a minha visita surpresa.
- Por que diabos invadiu meu apartamento de novo, sendo que desta vez, na minha ausência? – Fui despejando todas as minhas perguntas acompanhadas de uma colher de ira. - O que estava caçando? É por isso que está sendo procurado? È porque você viola as casas dos outros para mexer em tudo? É por isso que querem te matar?
Observei seus olhos se arregalando a medida que minhas perguntas eram proferidas.
- Mel... Eu não sei do que você está falando.
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16 comentários:
ameeeeeeeeeeeeeeei *-*
adoreeeeeeei! mais ó .. a postagem tá errada. ><
QUEROOO MAAAAAIS *O*
AMO
tinha como ser mais perfeito??
mais lindo impossivel
ameei, mais tem duas mesmas partes iguais
amei e tha perfeito *o* nenhum defeititnho, comecei a ler e VICIEEEEEI !
perfeituuhh ♥
tô viciada ♥
é inspirador a maneira q vc leva algo tão lindo as pessoas
♥♥♥
amo demais o q vc escreve, desejo toda a sorte do mundo!
quero muito q publiquem pra eu guardar com a mor na minha prateleira
amei___entrei na comun um dia por acaso i vi a divulgação du blog,,interesse i fiz um visita,ai me apaixonei pela historia i quero ler até um fim da trama...parabéns esta maquinifico
ÓTIMOOOOOOOOO!!
to perplecsamente apaixonada ♥
AMEI COMEÇEI A LER ONTEM E JA ESTOU APAIXONADA
♥♥♥♥ me apaixonei intensamente por inverso é um daqueles livros que te trazem mta emoçao ♥
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