domingo, 3 de maio de 2009

Capítulo 2 - O visitante

Não hesitei duas vezes em ignorar qualquer aviso de um cara desequilibrado e saí do apartamento mais rapidamente que um foguete. Fiz a promessa de cuidar da minha irmã e era isso que eu iria fazer. A possibilidade de perder outro familiar por causa de uma bala de revólver me fez tremer. Pode parecer idiota deixar o lugar onde te deram expressas ordens para ficar para ir ao encontro do barulho de tiro que eu tinha ouvido no mesmo andar, mas eu não estava pensando com lógica.

Abri a porta com violência, conseguia sentir a adrenalina correndo no meu sangue quando me deparei com o corredor vazio. Não havia sinal da minha irmã ou do Sam. Fiquei com medo de gritar por ela, alguma coisa me dizia que fazer escândalo não era a melhor opção. Ouvi outro barulho no andar de cima, parecia que alguma coisa havia sido quebrada. O elevador estava ocupado, desatei a subir correndo pelas escadas.

Antes que pudesse colocar o pé no corredor do andar superior, fui atingida por uma enorme massa preta que vinha no sentido contrário com uma velocidade dobrada. O desequilíbrio pelo impacto me fez cair um lance de escadas e parar no patamar central entre elas. Ouvi um barulho seco do meu tornozelo, a dor intensa cegou meus olhos. Nunca tinha quebrado nada, mas pelo tamanho daquela dor, eu sabia que era isso o que tinha acontecido. Acho que também bati a cabeça, estava me sentindo meio tonta.

A partir desse momento, murmúrios começaram a divagar no corredor poucos metros acima de mim. Aparentemente, os habitantes do sexto andar resolveram colocar a cabeça para fora para verificar a fonte de todo o barulho.

- Tiro! Tenho a certeza de que ouvi um tiro! - Bradou uma voz masculina em meio às demais que pareceram ficar ainda mais alvoroçadas.

- Mellanie! - Ouvi, ao longe, meu nome enquanto um vulto se aproximava. Aos poucos, a claridade foi sumindo a minha volta devido à aglomeração de vizinhos que se formava ao redor.

- Já chamei a polícia. - Informou a voz feminina que reconheci como sendo da síndica. - Vamos dar espaço para a menina, minha gente! - Os vizinhos começaram a se afastar e Sam pôde me segurar em seus braços. Estava, ao mesmo tempo, preocupado e nervoso.

À medida que começamos a descer, percebi que mais portas iam se abrindo em outros andares e mais gente queria subir para saber do ocorrido. Sofie tinha razão, as pessoas têm mesmo certo fascínio pela violência.

Quando chegamos ao meu andar, minha irmã materializou-se na porta do elevador, era ela quem o estava ocupando. A confusão expressou-se em sua face. Fez menção de falar algo, mas o olhar do Sam a calou. Ela então abriu a porta e permitiu que ele entrasse para me colocar na minha cama.

Eu fiquei com vergonha quando entramos no meu quarto. A enorme bagunça disfarçava a decoração azul turquesa, Sofie me olhou com desaprovação. Como eu disse, ela era extremamente organizada e sistemática, sentiu no mínimo vergonha pela blusa bege largada em cima do abajur e dos livros jogados ao pé da cama. Ela chutou um tênis para debaixo do guarda-roupa quando entrou, mas era tarde demais, Sam já tinha visto e não pareceu se importar.

- Ei... - Ele disse quando me colocou na cama.

- Sofia. - Ela fez questão de corrigi-lo.

- Sofia, pode chamar um médico para ela, por favor? - Ele perguntou calmamente. Ela assentiu e retirou-se do quarto. Sam voltou-se para mim. - Onde mais se machucou?

- Acho que só ali... - Mexi o pescoço para encarar um pedaço de salame que antes era meu tornozelo. Fiz uma careta por causa do movimento com a cabeça.

- Onde dói na cabeça? - Ele levantou as sobrancelhas, preocupado.

- Não é nada de mais. - Respondi tentando parecer bem, não queria ser nenhum motivo de incômodo.

Ele chegou mais perto e mirou os olhos verdes nos meus, então levantou o dedo indicador e o movimentou de um lado para o outro diante de mim. Segui seu dedo com os olhos, era meio hipnotizante.

- O médico deve chegar logo. – Tentou me acalmar sorrindo timidamente. – Preciso te levar ao hospital, para isso preciso me comunicar com a sua mãe. Qual o número dela?

- Eu acho que não precisa. – Respondi tentando sorrir, a dor já tinha passado um pouco, doía mais quando eu mexia a perna, talvez se eu ficasse parada...

Ele leu meus pensamentos.

- Não pense que vai se livrar do gesso.

Droga. Realmente me irritava quando alguém adivinhava minhas maneiras espertinhas de sair pela tangente.

- O número dela está no meu celular. Sarah.

Ele passou a mão na minha testa agradecido por eu ter colaborado tão facilmente, pegou meu celular na escrivaninha entulhada de papéis e pedaços da maquete que fiz para o último trabalho na escola e saiu do quarto.

Só então que a realidade despencou como um meteoro na minha cabeça. A luz, a invasão, o tiro, o homicida e o tornozelo pareciam elementos irreais demais para serem realmente verdade. Acho que, no fundo, ainda tinha a ligeira esperança de estar tendo um pesadelo. É o tipo da situação que você acha que nunca aconteceria com você até o momento em que acontece. Refleti um pouco acerca da enrascada na qual tinha me metido. Sofie e eu costumávamos nos virar sozinhas desde a morte do meu pai por causa da repentina obsessão da minha mãe pelo trabalho onde encontrava refúgio mental. Ficaria tudo mais difícil com um pé engessado e a idéia de ser cuidada por uma menina de treze anos me trouxe pânico.

- Ela não pode vir. Disse que está muito ocupada.

Que surpresa. A parte boa é que isso evitaria o gesso por enquanto.

- Chamei um táxi.
Ok, aquele cara estava começando a me deixar nervosa... E eu estava começando a gostar disso.

- Então por que mandou chamar um médico? - Sofia apareceu brava no portal do quarto.

- Achei que teríamos que esperar a mãe de vocês, mas já que ela não pôde vir... Não dá para deixar para depois.

- Não era melhor ter ligado antes para ela então?

- Fica quieta. - Mandei séria, não era possível que ela tinha a capacidade de discutir com os olhos verdes. A hipótese de Sofie ser um robô parecia, a cada hora, mais provável. - Você fica aqui e explica ao médico que não precisa mais vir, eu vou ao hospital. - Pus um ponto final na discussão.

- Nós.

- Perdão?

- Nós. Nós vamos ao hospital. - Ele corrigiu. - A menos que esteja planejando andar até o pronto-socorro como um saci.

- Então Sofie me acompanha e liga para o médico cancelando tudo no caminho.

- Está com medo de mim? - Ele perguntou como se estivesse se divertindo.

- Não. - Respondi desafiadora, mas talvez realmente estivesse com medo de um cara que aproveitou o escuro para pular minha sacada e dar de cara com a minha desordem sem a minha permissão. Ora essa, deveria existir a Lei da Bagunça Inviolável.

- Então eu vou, já disse para a sua mãe que iria te acompanhar. - Ele sorriu triunfante.

Eu iria discutir com o quase desconhecido sobre o direito de liberdade de companhia que vigora, até mesmo, no pronto-socorro, mas a campainha do interfone me interrompeu.

- O táxi chegou, vamos. - Antes que eu pudesse me mover, ele já estava me levantando e me carregando até a portaria. Segurei-me em seus ombros e senti o cheiro bom que exalava de seu pescoço. Deixamos minha irmã na porta e, desta vez, pegamos o elevador. Por falar em elevador, eu deveria passar a usá-lo com mais frequência, só hoje, tive dois transtornos indo pela escada, talvez seja um sinal.

Chegamos lá em baixo e percebi a balbúrdia na porta do prédio, havia várias pessoas, bombeiros, polícia, ambulância e tudo o mais. Se eu não soubesse do ocorrido, acharia que as pessoas do meu condomínio resolveram fazer um pacote com serviço público. O que estava parado na portaria não parecia ser um táxi, era um daqueles carros enormes e pretos em que o motorista usava um uniforme engraçado e havia uma separação entre os bancos dianteiro e traseiro para dar mais privacidade ao cliente. Tinha refrigerantes em uma das portas.

- Quer um? - Balancei a cabeça negativamente, não era hora para tomar alguma coisa. Agora que a adrenalina tinha passado, a dor estava começando a incomodar.

- Tudo bem? - Ele me analisou profundamente com os olhos enquanto se recostava suavemente no banco preto ao meu lado.

- Uhum.

- Mel, eu não vou te machucar... - Sentou-se de lado e me encarou. Continuei olhando para frente.

- Não estou com medo.

- Então qual é o problema? - É, no fim das contas, ele não me lia tão bem assim.

- Eu não te conheço. Tirando o fato de que se chama Sam e tem um cachorro chamado Tosha, não sei nada sobre você e você já está me levando ao pronto-socorro, envolveu-se em um tiroteio no meu prédio e invadiu meu quarto. - Ele pareceu não ter argumentos contra isso. - Ah e, em minha defesa, eu iria arrumar o quarto amanhã. - Ele riu, riu mesmo, praticamente gargalhou da minha cara. Isso me importunou, que audácia.

- É com isso que está preocupada?

- Não estou preocupada, foi só para constar. - Ele riu de novo. Eu não queria dar o braço a torcer. - Tenho outras preocupações no momento.

- Por que não me diz quais são?

Contei-lhe então sobre o problema de cuidar da minha irmã com o pé imobilizado e o meu pânico de ficar suscetível às vontades dela. Tudo bem que Sofia tinha juízo e idade mental muito superiores para alguém de sua faixa etária, na verdade, era capaz de realizar pensamentos muito complexos e dignos de adultos, mas eu não tinha a certeza de que tinha sensibilidade suficiente para cuidar de uma doente. Era bem capaz de me amarrar se eu resistisse a tomar o remédio.

- Vai dar tudo certo. - Ele disse, não em tom de consolação, mas com uma certeza inabalável. Só agora que o choque havia passado que me lembrei de perguntar o essencial.

- Pode me explicar o que aconteceu? - Ele suspirou, mas assentiu.

- Olhei para fora e percebi que as luzes só estavam apagadas no nosso prédio, então ouvi um barulho suspeito no seu andar, estava tarde demais para alguém ficar perambulando pelos corredores no escuro. - Pensei que era exatamente isso o que Sofie tinha feito, saiu marchando na escuridão. - Imaginei que ele fosse subir, então pensei que seria mais fácil pegá-lo se ele fosse surpreendido, na pressa, a melhor idéia que encontrei foi pular a sua sacada. - Imaginei qual tinha sido a pior. - Então eu daria a volta e ele estaria encurralado.

Aquilo me soou tão paranóico. A teoria da Sofia de que tinham esquecido a manutenção do circuito elétrico e a idéia de que poderia ser os passos de qualquer pessoa no corredor tentando descobrir o motivo do apagão me pareceram tão mais prováveis. Deixei-o terminar, sua expressão de genialidade me comoveu. Poderia perguntar o que tinha dado errado nesse plano "brilhante", mas achei muito óbvio. Não via como invadir um apartamento vizinho por causa de uma simples suspeita de atentado homicida poderia, algum dia, funcionar.

- O problema é que eu errei no raciocínio, ele não estava vindo ao sexto andar como eu pensava. Atirou no Sr. Felix do 507, que via, tranquilamente, televisão deitado em seu sofá.

Aquilo sim me chocou, notei os paramédicos e as ambulâncias na porta do condomínio quando saí, mas estava tão atordoada que não liguei, realmente, as coisas. O Sr. Felix era meu vizinho, morava no meu andar, no fim do corredor. Era simpático e educado. Por ser viúvo e idoso, tinha dois cachorros e me deixava brincar e passear com eles de vez em quando. Ele sabia que eu sentia falta de companhia e que a alergia da Sofie não colaborava, então me deixava cuidar dos seus animais. Era a segunda pessoa amiga da natureza que era friamente atacada no dia de hoje. Imaginei se seria alguma Máfia da Carrocinha. Pobre Sr. Felix.

- Como ele está?

- Até quando saímos, estava sendo levado por uma ambulância, depois disso, não sei.

- Espera, se o ladrão estava no meu andar, como estava descendo e esbarrou comigo na escada enquanto eu subia?

- Ele não estava atrás do Felix, quando percebeu que entrou no lugar errado e que logo chegaria gente, subiu as escadas para terminar o serviço. Nessa hora, eu já estava lá em cima de novo e fui eu que fui surpreendido quando ele apareceu na boca da escadaria olhando, confuso, um papel e fitando o olhar nas placas das portas dos apartamentos. Peguei um vaso de plantas que tinha no corredor, afinal, eu não estava armado e investi contra o cara. Errei por pouco. A sorte é que, no susto, ele perdeu o revólver, então me golpeou com o cotovelo enquanto eu ainda estava desequilibrado e saiu correndo escada abaixo. Com certeza, viu que não teria mais tempo e quis fugir.

Isso tudo me soou Hollywoodiano demais, mas eu tinha desistido de viver no meu conto de fadas duvidando que houvesse mesmo o perigo e resolvi aceitar a verdade. Por mais louco que seja, aquilo tudo aconteceu mesmo e eu tinha que assumir isso. Só então reparei na marca vermelha e sangrenta que havia entre seu pescoço e sua mandíbula, tinha sido um golpe feio. Desviei meu olhar para a sua face, era a primeira vez que o via corar.

- Eu corri para segui-lo, mas... Bem... Aí eu te vi caída no patamar entre os dois lances da escada. - Ele fitou o carpete preto no chão do carro, a timidez não o deixou me encarar.

Achei bem fofo, até esqueci, por hora, que estava super nervosa com ele por causa do lance da violação da bagunça do meu quarto.

Finalmente chegamos ao hospital, a dor já estava ficando quase insuportável e eu não queria chorar na frente dele, ainda mais quando ele se mostrou tão corajoso ao se aventurar sem um mapa pelo meu quarto e, é claro, desafiar um maluco armado. Estava até bem cheio por lá, achei isso meio aterrorizante. Fiquei observando o movimento enquanto o Sam preenchia todas as fichas com atenção e, mesmo diante de todas as minhas queixas, mandou debitar toda a conta no seu cartão de crédito. Ao fim, cedi. Estava planejando retribuir quando encontrasse mamãe, mas ele leu meus pensamentos de novo.

- Você não vai chegar nem perto desta conta. - Prometeu, desafiador, quando colocou o papel amarelinho no bolso da calça. Ok, agora eu nunca poderia saber o valor, mas não iria ficar assim.

Ele me acompanhou durante os infinitos exames, conversou com os médicos, me obrigou a comer aquela gelatina horrorosa e elogiou aquele avental azul terrível. Se fosse mais velho, teriam perguntado se era meu pai. Depois de algum tempo, me deram uma anestesia e engessaram meu tornozelo e, de brinde, meu pé. Como se não bastasse tudo isso, recebi a notícia de que era melhor passar a noite por lá.

Minha mãe não havia chegado até a hora que me deram um daqueles remédios chatos que te deixam meio tonta e você apaga. O que me reconfortou é que Sofie ligou diversas vezes, no fim das contas, ela não era um robô, estava mesmo preocupada (embora tenha dito estar aproveitando minha ausência para testar sua nova sonda para alienígenas).

As luzes foram ficando mais fracas na minha cabeça e uma névoa começou a cobrir meus olhos, lutei contra essa força que me puxava, mas estava difícil manter os olhos abertos.

- Tenho vinte anos, moro sozinho com meu cachorro, gosto de observar o nascer do sol e meu sorvete preferido é o de cereja. Meu nome é Samuel. - Pude ver seu sorriso embaçado quando ele disse tudo bem perto de mim.

Adormeci enquanto Sam me encarava e sentava-se em uma poltrona do lado oposto à minha cama. Apesar de aparentar cansaço e sono, seus olhos profundos não fecharam por sequer um minuto. Desisti de tentar ficar consciente, poderia dormir em paz.




Acordei em uma manhã quente de verão, o barulho dos pássaros que brincavam nas plantas do lado de fora da enfermaria me despertou. Visualizei o quarto branco e bege inundado pela luz do Sol. Sofia me observava do mesmo lugar onde Sam, na noite anterior, havia estado.

- Como se sente?

- Melhor. - Sorri. - Como chegou aqui?

- Sarah me trouxe quando estava indo trabalhar. - Imaginei mesmo que já passava das sete. - Ela disse que irá vê-la quando vier nos buscar para o almoço.

- Vamos almoçar juntas? - Estranhei.

- Não, ontem ela conseguiu a matéria do caso do velho dono dos cachorros.

- Sr. Felix.

- Naturalmente. - Ela não entendeu como uma correção, mas como se eu estivesse tentando confirmar a pessoa e fez aquela cara de quando diz o óbvio.

A informação sobre Sarah não me surpreendeu de novo. Nunca duvidei do amor que sentia por mim ou pela minha irmã, mas isso não significava que tinha desculpa para tal comportamento. Eu tentava ajudar, amenizar a situação, mas ela não poderia sofrer uma morte para sempre e muito menos se esconder atrás de pilhas de jornal.

- Por falar nisso, você apareceu na televisão.

Isso sim foi chocante, desde quando a vizinha idiota que, ao invés de ficar dentro de casa como lhe disseram, segue o barulho do tiro que ouvi aparece na televisão?

- Pediram uma foto sua, mostrei a da sua identidade estudantil.

Ficava cada vez pior. Eu teria voado para cima da minha irmã se não estivesse praticamente presa àquela cama da enfermaria. A foto da minha carteirinha escolar era medonha. As pessoas que viram, provavelmente, se perguntaram por que diabos a vizinha do Felix tinha uma moita no lugar do cabelo. Eu não sabia que a foto seria tirada naquele dia, então, em meio aos costumeiros atrasos, não tive tempo para arrumar o cabelo e ele ficou, basicamente, do mesmo jeito em que acordei. O que era um problema, já que ele é levemente enrolado e fica parecendo mesmo um arbusto quando não se cuida. Tive a certeza de que serial facilmente confundido se fosse verde, e não castanho claro como é.

Sofie percebeu a minha reação, será que é tão fácil assim me decifrar?

- Me pediram uma foto sua e entreguei a primeira que achei, Mellanie. Ah, e você deveria comunicar a Sarah que seu creme de pentear acabou.

Engoli em seco a crítica sobre o creme de pentear, não quis explicar a história do atraso e resolvi mudar de assunto, já que pensar nisso era meio torturante. Não sou o tipo de pessoa que se importa demais com as aparências ou que vive em função delas, mas acredito que nenhuma garota normal iria gostar de aparecer no noticiário local com o penteado da Carmem Miranda.

- O que dizia a reportagem?

- Contava sobre o acontecido. A maneira com que o delinquente invadiu o prédio, que atirou no Felix e que, enquanto tentava fugir, empurrou uma vizinha escada abaixo.

Faltava uma parte importante nessa história toda, onde o Sam aparece?

- Não contaram a parte em que o Sam o enfrentou bravamente? - Ela me olhou com curiosidade diante da minha pergunta, seu olhar pairou sobre a bandeja com os comprimidos ao lado da cama. Conhecia muito de remédios e, na certa, estava refletindo se algum deles causava alucinações.

- Bem, - ela suspirou - ele não alegou nada disso quando foi entrevistado. Disse só que tinha ficado dentro de casa o tempo todo e saiu quando o cachorro latiu.

Pensei nos motivos que o levaram a mentir, talvez fosse mesmo o mais inteligente a fazer, afinal, ele disse que não estava procurando o Sr. Félix, quem quer que fossem, deveriam voltar.

- Onde ele está?

- Não estava mais aqui quando cheguei, mas a enfermeira me disse que um moço bonito tinha passado a madrugada toda te observando.

O desapontamento recaiu sobre mim, me senti melhor dormindo sob seus olhos ontem à noite e, agora que tinha ido embora, tudo parecia bem mais irritante. Ele me causava uma sensação estranha de perigo e calmaria, mas acho que eu deveria deixar a ficha cair. Ele tentou salvar alguém ontem, me ajudou com o tornozelo, cuidou de mim no hospital e fim. Deveria seguir com a vida dele, sou só a vizinha a qual ele fez o favor de ajudar. Tentei afastar esses pensamentos também, por mais que repetissem em minha cabeça, não queria acreditar que fossem verdade.

- Como está o Sr. Felix?

- Está neste mesmo hospital, em coma.

Senti-me mal, muito mal. Tinha mais contato com ele que com o velhinhos dos pombos e só agora percebia como foi importante para mim passar algum tempo em sua casa e com os seus cachorros. Acho que seus animais me ajudaram, de certa forma, a suprir a perda do meu pai. E, só agora que ele estava em coma, é que parei para pensar nisso. Quem disse que só damos valor às coisas quando as perdemos estava certo. O pior sentimento foi o de que Sam teria pegado o culpado se eu não tivesse sido tão teimosa.

- Rebecca falou que vai te visitar lá em casa quando sair do colégio.

- Que bom. - Não era que não tivesse gostado da notícia, mas o desânimo era maior.

- Mellanie. - Minha irmã me chamou com seriedade na voz.

- Sim?

- O que você estava fazendo fora de casa?

- Não entendi.

- Por que saiu de casa e subiu ao sexto andar?

- Ouvi o barulho do tiro.

Ela me encarou como se eu fosse louca.

- Não era mais inteligente ficar em casa então?

- Você estava lá fora.

Se eu não conhecesse tão bem a Sofia, não teria percebido que isso a comoveu. Ela ajeitou o rabo de cavalo tão bem preso que carregava na cabeça e sorriu timidamente, solidária. Era uma pessoa que não tinha facilidade em demonstrar sentimentos e nem de nutrir relacionamentos. Quando meu pai morreu e minha mãe se atolou em serviço e, por isso, mal tinha tempo para nós duas, Sofie tinha apenas sete anos. Foi fadada a crescer cedo demais e aprender a se virar sozinha. Aprendeu a cozinhar a própria comida e a organizar suas coisas. Ficava sozinha em seu quarto e, como não tinha com quem brincar de bonecas, desaparecia por trás das pilhas de livros do falecido pai. Desde então, se mostrava muito distante e fria, mas pelo brilho dos seus olhos eu sabia que meu gestinho tinha significado bastante para ela.

Depois de passar a manhã toda ouvindo as novas teorias da minha irmã sobre a tecnologia das civilizações extraterrestres que, de acordo com ela, eram avançadas o suficiente para curar meu tornozelo em apenas minutos e, não só isso, também me acrescentar um braço extra, Sarah veio nos buscar.

Saí do hospital com um pouco de pesar, pode parecer deprimente, mas mesmo sendo um lugar lotado de dor e perdas parecia menos solitário que minha casa. A única coisa que me desagradou mesmo por lá foram as paredes brancas demais e a decoração bege pastel. Um pouquinho de cor cairia bem àquele lugar.

A tarde lá fora estava exatamente como o noticiário da noite anterior prevera. O sol forte a pino banhava todo o concreto do centro da cidade, tornando as sombras das árvores da praça em frente ao hospital lugares convidativos para aqueles que tinham tempo para sentar e conversar. Alguns pássaros aproveitavam o clima para se banharem na fonte no centro da praça redonda.

O congestionamento era grande nesse horário de meio-dia, ironicamente eu gostava disso, comprava mais tempo com a minha mãe.

- Por quanto tempo vai ter que ficar com isso? - Minha mãe perguntou enquanto olhava para frente, prestando atenção no trânsito.

- Duas semanas, talvez menos. - Respondi encarando seus cabelos castanhos claro que estavam presos em um coque alto.

- Como vai fazer com a escola?

- Estou pensando em ir amanhã e ver se incomoda muito. Vai poder nos levar?

- Tenho uma reunião amanhã de manhã. - Respondeu seriamente.

- Como vou a pé com essa coisa? - Levantei o gesso e ela olhou-me com seus olhos escuros, refletindo.

- Não podemos nos atrasar então.

- Não iremos.

E esse era mesmo meu plano, não iria faltar no colégio por duas semanas. Não é que eu gostasse tanto assim de estudar ou que achasse que as aulas me fariam tanta falta, era só repor tudo depois. O problema seria aguentar a solidão do apartamento nesse período, ainda mais quando Sofie estaria na aula. Ela faltou hoje para ficar comigo, mas não aconteceria de novo.

- Tenho um comunicado a fazer. - Estranhei mesmo a maneira como ela estava calada lá no banco de trás, estava demorando...

- Não vamos nos mudar. - Eu falei rispidamente.

- Eu não ia dizer isso.

- Melhor mesmo.

- Mellanie, pode deixar sua irmã falar? - Minha mãe perguntou impaciente e aproveitou um sinal vermelho para virar-se em minha direção.

- Posso? - Sofie indagou em tom de crítica.

- Prossiga.

- Esperei nosso breve encontro familiar para poder comunicar que ontem recebi o resultado da prova que prestei naquele centro de pesquisas no mês passado.

- E como você se saiu, filhinha? - Sarah perguntou sorrindo.

- Bem, eu passei naquele curso sobre iniciação científica.

- Ah, parabéns, querida! Você é o orgulho da mamãe! - Mamãe exclamou enquanto ultrapassava um fusca na outra pista.

- Que bom, Sofie! - Fui verdadeira com as palavras, apesar de não ter achado surpresa alguma. Eu tinha certeza de que minha irmã passaria, mesmo competindo com centenas de adultos.

- Começa hoje mesmo. As palestras ocorrem de segunda à sexta, das seis e meia às onze e meia.

- O quê? Como fica a escola? - Perguntei.

- Da noite.

- De jeito nenhum! - Sarah esganiçou alto enquanto freava bruscamente e recebia diversas buzinas dos carros que estavam atrás de nós. O solavanco me fez bater a cabeça no vidro lateral do carro.

- Sarah!

- Mamãe.

- Mamãe, - Sofie se deixou corrigir - esse curso é de suma importância para a minha formação acadêmica!

- Não interessa. Minha filha, ainda criança, não vai ficar sozinha na rua até quase meia-noite.

Minha irmã mirou-me com olhar de súplica. Eu não poderia fazer muita coisa na situação em que estava. Se meu pé não estivesse engessado, poderia até me oferecer para ir com ela, pelo menos quebraria minha rotina monótona. Mesmo assim, resolvi intervir em favor dela, não achava justo excluí-la ainda mais do mundo para trancá-la dentro do quarto como já acontecia todos os dias. E, conhecendo minha irmã como conheço, sei que as chances de ela aproveitar esse tempo à noite sozinha para se jogar na esbórnia eram menores que zero.

- Mãe, acho que ela deveria ir. Ela nunca sai, nem nada. A maioria das garotas da turma dela já vai para festas, se droga, ficam bêbada e volta grávida para casa. Acho que ela merece ir por bom comportamento. - É, eu tive que exagerar para poder impressionar Sarah.

- E são só por dois meses. - Sofia acrescentou.

- Quem vai buscá-la e levá-la?

Não tinha pensado nisso e tinha a certeza de que Sofie estava planejando ir de ônibus, mas isso já era demais. Meu trauma com a violência em cidades médias era grande o suficiente para impedir que uma criança de treze anos perambulasse pelas ruas de ônibus à meia-noite.

- Você a leva quando vier em casa pela tarde e a busca quando estiver voltando. Os horários coincidem.

Isso era verdade, ela tinha o hábito de passar em casa por volta das seis, tomar um banho, pegar algum relatório ou pasta e retornar ao trabalho. Depois voltava quase meia-noite para dormir e saía cedinho na manhã seguinte.

- Ela vai me atrasar.

Calei-me pensando em outro argumento. Estava disposta a lutar pela Sofia. Minha mãe não percebia que ela crescera e que, aliás, crescera demais para alguém de sua idade. Pulara toda a infância e caíra direto na fase universitária, na qual eu nem havia entrado ainda. Sarah a tratava como se o tempo tivesse parado e ela ainda tivesse sete anos. É lógico que não ter a Sofia por perto à noite por dois meses me faria ainda mais solitária, principalmente agora que eu enfrentava dificuldades até para me locomover sozinha, mas não era justo privá-la de tudo em sua vida.

- Duas semanas.

- O quê? - Minha mãe perguntou franzindo o cenho.

- Você a leva enquanto eu estiver assim. - Apontei o gesso ainda branquíssimo no meu tornozelo. - Depois, eu mesma faço isso.

Ela pareceu não ter argumentos contra isso e ficou calada o resto do caminho. Isso significava que tinha aceitado, mas que não gostava nada dessa história. Também fiquei em silêncio, estava pensando como iria ocupar esse tempo em que Sofie ficaria fora. Talvez eu aprendesse a bordar, tudo bem, essa idéia não me animou nenhum pouco.

Sarah nos deixou na portaria do condomínio tranquilo na hora do almoço. Por causa do meu pé, tivemos que esperar alguns minutos para subir do térreo ao quinto andar de elevador. Talvez fosse esse o motivo da minha teimosia em usar as escadas, o elevador está quase sempre ocupado e demora demais.

Assim que entrei, dei de cara com o Sam. Estava calmo encostado na parede, pelo visto, tinha embarcado no estacionamento logo abaixo. Ele acenou com a cabeça em sinal de cumprimento quando nos viu, eu sorri. Ele não disse nada, nenhuma palavra e, na verdade, continuou olhando para os botões como se fossem interessantíssimos.

A viagem até o meu andar pareceu muito mais longa que o normal, por isso comecei a bater o outro pé no chão freneticamente. Foi uma situação um tanto constrangedora. Eu queria dizer e perguntar várias coisas, mas o elevador não me parecia o local apropriado, sem contar que percebi as tentativas dele de fingir que não me conhecia.

Depois, Sam pareceu notar a minha impaciência e ficou um pouco confuso. Olhando mais de perto agora, não tinha a aparência de alguém que pula sacadas para invadir apartamentos vizinhos ou que se joga na frente de malucos armados. Parecia uma pessoa mais tímida e sensata a esse olhar.

Quando desci com dificuldade, acompanhada da Sofia, no meu andar e dei-lhe as costas, escutei:

- Boa sorte com o pé.

- Obrigada. - Respondi com confusão.

Aquilo me incomodou demais. Almocei e passei horas com isso martelando em minha mente. Fiquei arrasada com a maneira que ele potencialmente me ignorou. É claro que eu não esperava que ele me abraçasse ou coisa assim, mas custava perguntar como eu estava ou comentar sobre ontem à noite? Não, ele fora completamente indiferente, como se nunca tivesse me visto antes ou coisa parecida. A revolta brotou em mim como ervas daninhas em um jardim e estava difícil tirá-la de lá.

Assisti o filme da tarde que passa na tevê para ver se tirava isso da cabeça, mas a decepção era maior que as minhas forças de distração. Consegui me desligar por algumas horas quando Rebecca apareceu para me visitar. Fizemos brigadeiro, jogamos baralho, ouvimos música - sob as estrondosas reclamações da Sofie - e agora estávamos conversando deitadas no sofá da sala. Como era minha melhor amiga, percebeu que havia algo que tinha me deixado nervosa, então eu tive que contar tudo desde o início.

- Certo, recapitulando: ontem ele invadiu seu quarto, praticamente se meteu na frente de uma bala, te carregou nos braços, ficou a madrugada toda te observando enquanto você dormir no hospital e hoje fingiu que não te conhece?

- Exato. - Confirmei com pesar. Era doloroso, mas era isso mesmo o que tinha acontecido.

- Desisto. - Encarei seus olhos castanho-escuro, confusa. - Não tenho nenhuma teoria, não sei que tipo de atitude é essa.

A frase dela me desanimou ainda mais. A Rebecca assinava umas dez revistas femininas daquelas cheias de testes malucos e matérias que analisam e definem o psicológico masculino, achei que poderia me esclarecer esse comportamento incomum, mas pelo visto ela também não tinha achado algum sentido por trás disso.

- Talvez seja o jeito dele de mostrar que é só meu vizinho, mais nada. Não quis me dar falsas esperanças. - Constatei fitando um vaso de plantas decorado com margaridas e pássaros feitos de argila, mamãe deveria estar fora de si quando comprou aquilo.

- Mel. - Ela disse naquele tom que usam quando você diz que Papai Noel existe, uma mistura de compaixão e "por favor, caia na real". - Um cara que, não só te leva para o hospital, mas também paga tudo e te acompanha até enquanto você dorme, não quer ser só o seu vizinho.

- Vizinhos se preocupam os outros! - Protestei sem brincadeira, eu me preocupava e gostava dos meus. Estive até um pouco deprimida por causa do que aconteceu com o Sr. Felix.

- Ok, qual outro vizinho seu estava junto com o Sam?

Ela me pegou. Vários outros moradores do prédio ligaram ou me mandaram cestas e cartões de melhoras, mas nenhum deles fez tudo o que o Sam tinha feito.

- Um vizinho que quer ser só vizinho teria chamado uma ambulância, ligado para a sua mãe e fim.

- Então por que me ignorou hoje?

Agora fui eu que a peguei. A explicação mais plausível era a minha. Ele não quis me ferir me mandando parar de sonhar, ou pelo menos não quis me dizer isso. Não quis dizer que ontem à noite foi pura educação ou culpa. Sim, deveria ser culpa. Afinal, ele invadiu meu apartamento e, ao fazer isso, acabou me envolvendo na história toda, apesar de não ter sido responsável pela minha desobediência em deixar minha casa. Então cuidou para que eu fosse medicada e pagou tudo. Para que eu pudesse enxergar essa verdade sozinha, me tratou com o devido distanciamento de vizinhos que somos.

Eu realmente nunca tinha me dado à ilusão de imaginar ter, algum dia, um relacionamento amoroso com ele. Como já disse, eu não chegava nem perto das modelos que ele, com certeza, pegava. Posso garantir, contudo, que toda a atenção que ele dedicou a mim na noite de ontem tinha me tocado de um jeito profundo. Não preciso explicar que não era possível ter a atenção do meu pai, menos ainda a da minha mãe e muito improvavelmente a da minha irmã. Fazia tempo que não era eu que estava cuidando de alguém, mas o contrário. Foi isso que me desestruturou em relação ao Sam, ele me protegeu em seus braços fortes e me ofereceu amparo, mesmo diante dos meus protestos e mau humor, mas esse nosso último encontro tinha passado por cima de mim como uma máquina agrícola.

Rebecca teve que ir embora quando caiu o crepúsculo, tinha aulas de dança que não poderia perder e Sofia continuava trancada no quarto como na tarde inteira que havia se passado. Eu decidi escolher um lugar fixo para permanecer já que minha locomoção estava difícil. Ficar andando de um lado para o outro só aumentaria o sofrimento. Então tomei um banho rápido cuidando para que o gesso não molhasse, recolhi toda a comida que achei nos armários, vesti uma camisola, peguei um cobertor leve e me atirei no sofá vermelho da sala. Iria ficar lá até a hora em que fosse dormir, não me mexi nem para abrir e fechar a porta quando Sofia saiu de carona com a mamãe para o seu primeiro dia de palestra no centro de pesquisas da cidade.

Mudei os canais da televisão procurando algum programa que prestasse, a melhor coisa que encontrei foi uma novela das sete muito chata, mas como jurei a mim mesma que não iria me mover me contentei em assistir à trama. Com o passar do tempo, até me distraí com a história. A Maria Antonieta tinha acabado de flagrar seu noivo, Rodolfo Augusto, na cama com Kate Lúcia quando fui surpreendida.

- Boa noite, Mel.

12 comentários:

gabby disse...

ameiii!! mtoo bom msm!!

queroo o 3!!!! =)

Lidia disse...

Por favor, não pára! Posta mais ♥ Viciei *___________________*

Gaby disse...

comecei ontem e jah ameei

Zania! disse...

LINDO!

Telma! disse...

AMO AMO AMO!

beatriz disse...

comecei ontem e nao consigo mais parar! K3

Mylena Furtado disse...

MAIS MAIS MAIS

Juliaa disse...

nossaaa, muito viciantess

Unknown disse...

Adriana: cara muito bom ta de parabens :)
vou fazer propaganda do livro

Gata dos desejos disse...

Intrigante e apaixonante ♥

Anônimo disse...

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah quem será que é???? tô muito curiosa hahahah amo demais inverso (L)

Edite disse...

tenho certeza que vai ser best seller, lihn rocks ♥

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