sexta-feira, 15 de maio de 2009
O vento soprava as folhas das árvores antigas e enormes estendidas entres os musgos que venciam as pedras de basalto que havia encostadas nos prédios do condomínio um pouco afastado do restante da cidade. Os pingos de chuva colaboravam com o barulho da grande tempestade que se fazia rainha lá fora. O som dos trovões, que costumava ser fonte de medo para as crianças, me tranqüilizava de algum modo, mas, naquela noite específica, ele não pôde proporcionar meu sossego.
Apesar de a noite finalmente certa para se ter um bom sono, os meus sonhos foram dotados das mesmas imagens estranhas que os habitaram na noite anterior. Em meio a tanto horror, não pude ouvir a chegada de Sarah e Sofie na calada da noite. Também não me perguntei a reação da minha irmã quando abriu a porta do quarto, o único o qual eu não havia entrado para organizar. Aquilo não mais me importava.
Eu estava habituada a reclamar de minha rotina maçante em que eu, não sei porque motivos, brincava incessantemente de casinha, cuidando da casa e da minha irmã. Era um sentimento de desalento infinito. Por vezes, eu implorei ao destino que mudasse as coisas, que tirasse a sensação de vazio, de mesmice, de tédio vital de dentro de mim, nunca imaginei, contudo, que seria dessa maneira.
Eu, talvez, esperasse um acontecimento novo, uma situação inesperada ou uma emoção embriagante, mas não esperei, em momento algum, um episódio tão sombrio. Eu certamente não estava temendo pela minha própria vida, embora não quisesse morrer antes de ter algum sentimento de realização. O meu maior medo era de que mais gente pagasse o preço da minha procura. O Sr. Felix era o exemplo mais recente dessa fatalidade, o primeiro, mas ninguém poderia garantir que seria o último.
Foi tomada por esses pensamentos que consegui acordar na manhã neblinosa do dia seguinte. Os pássaros não cantaram naquele dia. Apesar da aurora crescente, ainda estava meio escuro lá fora, deveria ter acordado cedo demais. Levantei assim mesmo, não iria forçar o sono que desaparecera após a leitura daquela anotação na noite passada.
Esquentei uma caneca de leite e fiquei remexendo-o com a colher durante quase uma hora, como eu tinha o hábito de fazer. O redemoinho branco dentro do recipiente representava as idéias passando em círculos pela minha cabeça.
Não sabia o que levaria alguém, quem quer que fosse, a procurar por mim. Aliás, eu costumava ser um repelente de pessoas. Não que eu me importasse, eu já tinha os melhores amigos que alguém iria querer, mas isso deveria significar que eu não tenho motivos para ser caçada. E, no entanto, de todas as pessoas que moravam no apartamento 501 do condomínio Eldorado, eu era a mais provável de ser o alvo. Se quisessem pegar a Sarah, o último lugar que iriam procurar seria em casa, afinal, ela passa a maior parte do tempo fora. E Sofie... Por que raios iriam querer Sofie? Ela tem apenas treze anos e mal conversa com as outras pessoas, gosta de fingir ser invisível às vezes, porém é a única que possui um atributo que realmente chama a atenção. As poucas vezes em que ela falava em público eram suficientes para atrair olhares admirados e assustados com tamanha genialidade em tão pequena pessoa. Tremulei perante a hipótese de desejarem Sofie. “Não!”, a voz da minha consciência rugiu em minha cabeça. Preferia que fosse eu.
Escutei a porta do banheiro principal rangendo, espantei-me com o hábito de Sofia de acordar tão cedo. Ela colocou a cabeça para fora.
- Mel! – Exclamou muito brava e apareceu do lado da porta vestindo um robe prateado que ficava grande demais para ela.
Eu sabia o que ela iria dizer, pelo tom irritado que usara, deveria estar prestes a pedir explicações sobre o furacão que passara em seu quarto ontem à tarde. Eu teria que inventar alguma coisa para não preocupá-la ou assustá-la. Ainda que agisse como uma adulta, era errado atormentar alguém tão jovem com isso tudo. Tentei me preparar para mentir, era péssima nisso.
- Sim? – Eu respondi procurando evitar o nervosismo, respirei fundo.
- O que aconteceu aqui ontem? – Ela perguntou seriamente.
- Não sei... O que aconteceu aqui ontem? – Eu tinha que me livrar desse costume de repetir a pergunta que me fora feita a fim de ganhar mais tempo para pensar na mentira que iria contar, era muito óbvio, mas Sofie se confundiu. Seus pensamentos seguiam uma linha reta e objetiva, portanto ficava um pouco embaraçada quando lhe respondiam uma pergunta com outra pergunta.
- Mais isso foi o que lhe perguntei!
- O que você acha que aconteceu ontem? – Talvez se a teoria dela envolvesse ETs eu não teria que inventar nada, só confirmar.
- Por que você desorganizou o banheiro? O que estava procurando? – Ela me jogou aquele olhar da Inquisição.
O banheiro? Eu achei que ela iria dar um chilique por causa da bagunça em seu quarto! E eu havia arrumado o banheiro ontem... Ou pelo menos tentado.
- O que aconteceu no banheiro?
- Os xampus estão fora da ordem alfabética, o desinfetante está no lugar errado na gaveta, a etiqueta do tapete está do avesso... – Ela começou a enumerar centenas de detalhes, os quais, na pressa, eu não prestara muita atenção. Decidi me fazer de desentendida.
- Tenho certeza de que foi algum engano da faxineira.
- Tem um vidro de catchup dentro do armário. – Ela cruzou os braços.
- Ah. – Essa foi inesperada. – Achei que você iria pirar por causa do quarto. – Resolvi ser sincera.
- O que você fez no meu quarto? – Perguntou, pela primeira vez, passando pelo pânico. Agora sim ela tinha pirado.
- Você ainda não entrou lá? – Achei estranho.
- Eu dormi lá.
- Não notou nada diferente? – Franzi o cenho.
- Não. Você entrou lá? O que queria? – Ficou pensativa de repente. – Meu novo detector de espectros que construí ontem não percebeu a sua presença. – Sentiu-se um pouco decepcionada.
- Eu não entrei lá. – Balancei a cabeça negativamente para reafirmar a frase.
Ela arregalou os olhos por trás dos óculos grossos. Se fosse um robô, fumacinha estaria saindo de sua cabeça.
- Então por que mencionou o quarto? Você quer me enlouquecer? – Perguntou irritada sentando-se à mesa.
- Não. Acho que... Acho que sonhei, desculpe.
Achei esquisitíssimo que todos os cômodos da casa tivessem sido revirados com a única exceção do quarto da Sofia. Eu não tinha uma teoria para explicar isso.
- Cadê a Sarah? – Perguntei ao tentar desviar a atenção dela, já estava muito desconfiada olhando para mim. Ela encarou o relógio na parede da cozinha.
- Vai acordar daqui a 16 minutos e 32 segundos. – Disse sem hesitar. Perguntei-me como ela sabia disso. – Você acordou cedo.
- Não dormi direito.
- Você está grávida? – Ela me fitou com seriedade.
- O quê? – Achei um absurdo. – Não!
- A insônia é muito comum no início da gestação, atinge 42,56% das mulheres na primeira gravidez. – Informou-me.
- Não estou grávida. – Disse cada palavra pausadamente para dar ênfase.
- Oh. – Ela deu de ombros. Parecer achar interessante que meu distúrbio do sono não tivesse relação com nenhuma gravidez. – Meus cereais não estão organizados de acordo com a quantidade de vitaminas B12. – Reclamou ao notar outro detalhe que deixei passar na prateleira da cozinha.
- Com quem você estava ontem? – Ela me olhou incrédula ao ouvir isso.
- Estou tendo um déjà vu.
- Quê?
- Já tivemos essa conversa ontem. – Sofie respondeu enquanto enchia uma tigela de um cereal marrom.
- Quero saber o nome desse seu amigo. – Falei após, durante segundos, pensar na frase mais objetiva que consegui.
- Noah. – Ela disse como se nem fizesse questão. Minha irmã tinha a mania estranha de não achar muito sentido nessas perguntas que ela julgava sem importância.
- Quando o conheceu? – Franzi as sobrancelhas.
- Antes de ontem. – Ela disse e acrescentou leite à vasilha de cereais. Ela também tinha o hábito engraçado de responder essencialmente a pergunta que lhe fora feita e pronto, sem mais detalhes. Isso dificultava nossa comunicação, eu queria saber exatamente quem era esse Noah.
- E já virou amigo dele? – Definitivamente muito estranho.
- Não somos amigos. Temos uma relação estritamente profissional. – Ela me corrigiu sem pestanejar.
- E de onde veio esse cara? – Sim, eu estava preocupada com estranhos que se aproximavam da minha irmã nesses últimos dias. Sofie me encarou tentando entender minha linguagem.
- Ele é do curso. Temos que desenvolver um projeto em duplas. Por que está tão interessada?
- Nada. – A história das duplas já tinha fechado a questão. Ele estava com a Sofie porque fora obrigado pelo professor a fazer dupla com alguém, não deveria ter nenhum interesse nela além disso. Acho que estou ficando paranóica.
- Você vai à escola?
- Vou.
- Então apresse-se. Sarah vai acordar em um minuto e meio. – Ela concluiu olhando para o relógio na parede de azulejos brancos da cozinha. – Ela demora apenas oito minutos para se arrumar.
Bebi o leite em um só gole ao ouvir essas palavras e avancei ao corredor para me vestir, ainda estava de camisola. Demorei alguns minutos para escolher a roupa e arrumar os cabelos que hoje amanheceram mais lisos e domados, um bom sinal ao começar o dia.
Quando saí, minha mãe já estava destrancando a porta com uma xícara de café na mão que ela tomava durante a luz vermelha do semáforo. Sofie se postava ao seu lado, já vestida e impecavelmente arrumada. Admirei-me como suas roupas estavam sempre limpas e bem passadas. Era também incrível a maneira como se ajeitava rápido, talvez eu devesse, assim como ela, ser mais organizada.
Não houve conversa durante o trajeto até a escola. Aparentemente, algo deixara Sarah revoltada no jornal em que trabalhava cobrindo a coluna de eventos.
- Querem que eu cubra o evento em que vai uma tal Paola Lince ao invés de me darem o caso do Felix. – Alegou irritada e, depois disso, ninguém mais disse nada. Me lembrei da Rebecca, ela era fã dessa mulher.
O colégio estava igual, aliás, eu faltei somente um dia seria estranho se estivesse diferente. O prédio cor creme de quatro andares erguia-se entre algumas árvores altas e grossas e entre outras construções de concreto. Alguns pombos se equilibravam nos fios da rede elétrica e outros se banhavam na grande fonte que havia no centro do pátio aberto e delimitado por cercas de ferro onde vários alunos conversavam animadamente antes do começo das aulas. Sofie se despediu dizendo que teria que fazer uma pesquisa na biblioteca e me deixou sozinha na frente do grande portão escuro e de metal. Embora eu não notasse nenhuma diferença física no espaço escolar, estava notando grande diferença no comportamento dos estudantes ao redor.
A massa de pessoas usando uniformes azuis e brancos, cores da instituição, estava me encarando incessantemente enquanto eu entrava. Foi um pouco chocante essa recepção, já que eu não era exatamente o tipo popular que chamava a atenção aonde quer que fosse. Pensei que isso poderia ser o resultado de uma ilusão causada pela paranóia que eu tinha adquirido de uns tempos para cá, mas após andar por mais alguns minutos percebi que os alunos estavam mesmo olhando para mim. Perguntei-me se minha roupa estava suja ou algo assim, contudo não consegui visualizar sujeira nenhuma.
Eu já estava ficando muito irritada com a quantidade de olhares e cochichos que me seguiam quando avistei Rebecca e Lean andando próximos a escultura de duas crianças lendo um livro gigante que se postava no pátio de dentro.
- Mel! – Lean exclamou animado ao me avistar.
- Oi... – Respondi olhando indecisa para os lados. – É impressão minha ou está todo mundo me encarando? – Indaguei um pouco receosa ao perceber que um grupo de alunos mais velhos passou por mim dando risadinhas.
Rebecca fuzilou Lean com um olhar de censura. Continuamos andando.
- Conta para ela! – Ela exclamou bastante nervosa, ele desviou o olhar.
- Contar o quê? – Eu perguntei preocupada, já estava ficando encabulada com os olhos voltados para mim. O bom é que, como já estávamos no pátio interno, não havia tanta gente.
- Diz para ela, Lean. – Rebecca falou com o tom de voz ameaçador. Ele me fitou com culpa, depois olhou para os próprios pés.
- B-bem Mel... – Começou gaguejando. – E-eu não q-queria causar i-isso, eu...
- Diz logo. – Falei seriamente.
- Ele espalhou para o colégio inteiro que, para salvar seu vizinho, você lutou com um assassino armado que queria explodir seu prédio. – Rebecca disse em tom seco e sem hesitar. – Agora todos acham que você é uma daquelas justiceiras de filmes, a mulher-aranha ou coisa assim. Esse seu pé engessado só comprovou a história, por isso estão olhando.
Apoiei meu rosto sobre as mãos tentando contar até dez e evitar que eu matasse o Lean. Essa história tinha 0% de verdade. Eu não lutei com ninguém, muito menos com um assassino armado e, ainda menos, era uma justiceira. Eu era apenas uma garota normal que fez a burrice de sair de casa desrespeitando ordens e teve o azar de trombar com um idiota que não sabe distinguir um 7 de um 1 quando ele estava descendo as escadas. Aliás, se ele soubesse fazer essa distinção eu, provavelmente, seria a pessoa naquele hospital, não o Sr. Felix.
- Mel, eu posso explicar... – Ele disse após os segundos em que eu parei de andar e fechei os olhos pedindo para ter compaixão e poupar Lean de um soco. – Eu meio que me empolguei quando fui explicar porque sua foto apareceu na tevê e...
- Empolgou-se? Você estava visivelmente fumado quando inventou essa história! – Agora as poucas pessoas que não estavam me encarando antes passaram a contemplar meu ataque público de histeria.
- E isso não é tudo! – Rebecca comentou, como ela gostava de colocar lenha na fogueira! Mas eu preferia que me contassem tudo logo mesmo. Olhei para ela. – As pessoas que ouviram essa loucura que o Lean contou resolveram acrescentar as próprias modificações na história, você sabe, incrementar os próprios detalhes... Agora várias versões ainda mais sem nexo estão correndo por aí.
Imaginei o que poderia ser ainda mais insano que a história de eu, com meus 1,65m, ter enfrentado um criminoso armado e partidário do terrorismo a fim de salvar meu vizinho.
- Ouvi hoje no banheiro feminino que anda correndo pelas más línguas que você é uma agente secreta do governo infiltrada na escola para nos livrar de uma ameaça terrorista.
- O que colocaram na água desse lugar? – Esganicei ao pensar que certamente alguém tinha contaminado a caixa d’água do colégio com algum alucinógeno ilícito.
- Mais cedo no pátio estavam dizendo que a Mel salvou o vizinho porque mantinha um caso com ele sem o conhecimento da esposa. – Lean informou.
- O Sr. Felix tem mais de cinqüenta anos! – Rebecca abriu a boca para, provavelmente, fazer a objeção de que isso não comprovava que o boato era falso. - E é viúvo! – Completei antes que ela falasse algo. Eu estava totalmente transtornada com todas as mentiras sobre o que houvera antes de ontem. – Como as pessoas acreditaram nisso? Está na cara que não é verdade!
- Ah Mel... – E ela usara o tom da compaixão de novo. – Você sabe que se isso tivesse sido estampado em um jornal muitos duvidariam, mas a fofoca tem uma credibilidade extraordinária por aqui. Mas, se quiser, eu seguro o Lean e você bate. – Lean tremeu ao ouvir isso. Tinha muito medo dela visto que ela possuía o costume de gritar muito com ele.
- Me desculpa mesmo, Mel... Eu não quis te causar problemas. Só achei que te ajudaria com o grêmio, achei que te dariam mais atenção se você fosse uma heroína...
Heroína... Era isso o que ele estava usando.
- Tudo bem, Lean. – Suspirei. Estava muito nervosa, mas percebi que ele não fez de má fé. – Só nunca mais faça isso.
- Pode deixar. – Ele respondeu. Parecia estar se sentindo muito culpado.
- Se ele fizer – Rebecca fez questão de ameaçar – eu mesma usarei a tesoura de jardinagem do meu pai para cortar algo que ele não vai gostar.
Eu e Lean arregalamos os olhos e nos voltamos para ela, assustados.
- O quê foi? Eu estava falando da língua... – Não me convenceu.
- Mel! – Virei-me para encarar a última criatura que queria ver naquele momento.
- O que você quer?
- Queria saber se você quer tirar uma foto junto comigo para aparecermos na primeira página do Folhetim. – Patrícia Petry perguntou animadamente ao aparecer com um laço cor-de-rosa preso no pescoço. Parecia mais uma coleira.
Folhetim é o jornal falido da escola. Parecia uma daquelas revistas de fofocas de celebridades só que estrelado pela “elite” do colégio. Noticiava todas as festas, comentava todas as roupas e quem foi flagrado almoçando com quem. Tenho a teoria de que é um grande fracasso porque somente quem aparece nele é que não usa o jornal para equilibrar as mesas mancas. Agradeci aos céus por aquela droga ser semanal e não diária. As eventuais coisas boas que haviam impressas eram umas piadinhas que Lean postava de vez em quando na pequena coluna que conseguira: “O Cafofo “.
- Por quê? – Pensei nos motivos que levariam uma pessoa que geralmente fingia que não me conhecia a querer tirar uma foto comigo e mostrar para todo mundo.
- Não acredito em nada do que andam falando... Mas agora você é o último assunto que todos comentam por aqui. Pensei que daria mais Ibope para o Folhetim se tirássemos uma foto juntas, que tal? – Seu sorriso de dentes arreganhados me assustou. – A manchete poderia ser: “Patrícia e Melissa salvam o grêmio estudantil”.
- Meu nome é Mellanie. – Corrigi sem fazer tanta questão. E imaginar que essa criatura se dizia minha amiga alguns anos atrás. O mundo estava mesmo perdido.
- Que seja. – Ela sorriu deslumbrada.
- Se quiser salvar o grêmio vai ter que retirar todas as pessoas nojentas que estão nele, incluindo você. – É, eu já estava irritada sem essa história de foto, não precisava mais dessa.
- Isso é um sim? – Ela esganiçou dando pulinhos. Achei incrível sua capacidade de conseguir ouvir somente as palavras que lhe convinham. Na minha frase inteira, deve ter escutado apenas “grêmio”, “pessoas” e “você”.
- Isso é um “se manca”. – Saí andando e deixei-a sozinha petrificada no lugar onde estava. Com essa mania de ouvir somente o que queria, levaria segundos para entender a minha frase.
- Acho que, depois dessa, ela vai ficar algum tempo sem incomodar. – Rebecca disse tentando me acompanhar. – Talvez um dia. – Sorriu maliciosa.
Os horários que se passaram depois da minha chegada foram torturantes. Algumas pessoas riam ao me ver, outras diziam coisas como “corajosa” ou “mandou bem”, algumas me apelidaram de “a outra”, uma menina da 6ª série até pediu para que eu assinasse seu caderno da Barbie. Isso tudo além dos incessantes olhares e cochichos que eu tive que agüentar e que as pessoas nem se importavam em disfarçar. Pela primeira vez, senti dó das celebridades em geral, se eu já estava irritadíssima somente por receber a atenção da parte do colégio que acreditava fielmente na fofoca, imagine o que um famoso de verdade não passava ao ir apenas à lavanderia.
No intervalo, Rebecca e eu preferimos comer sozinhas sentadas nas escadas dentro do prédio para evitar as pessoas que estavam lá fora. Sofie teve que continuar a pesquisa na biblioteca e Lean teve o azar de atirar uma borracha pela janela sem querer e acertar justamente a cabeça da diretora Carla, por isso estava na supervisão. Assim, nosso recreio estava meio solitário, aproveitei para contar as últimas para Rebecca.
- Quem você acha que entrou no seu apartamento? – Ela perguntou depois que me ouviu.
- Não sei.
- Como entraram?
- Não sei.
- Por que estão te caçando?
- Não sei.
- Por que só não reviraram o quarto da Sofie?
- Já disse que não sei!
- Nossa, a coisa está feia mesmo. Acha que foi o Sam? Ele é o único que pode entrar sem ser pela porta...
- Não, ele está me ajudando. – Refleti.
- Você acha que é algum tipo de vingança? – Ela deu a sugestão.
- O quê? – Minha voz saiu mais fina do que o normal. – O que eu fiz para quererem se vingar de mim?
- Sei lá... Talvez tenham ouvido essa história do Lean de que foi você que impediu o assalto e tal...
- Não faz sentido. Eles já estavam procurando por mim desde o começo. E também... Quem além desse povo sem noção acreditaria nisso? Quero dizer, olhem para mim! Eu tenho cara de combatente?
- Não. Você parece delicada demais para se jogar na frente de uma bala.
- Não sou delicada demais. - Essa frase soou que eu era meio fresca, eu não sou assim. - Eu só não tenho o tipo físico necessário para desenvolver a habilidade caça-terroristas. – Ela concordou comigo balançando a cabeça.
- O Sam vai te proteger agora? – Disse naquele tom risonho e, ao mesmo tempo, safado.
- Dá pra parar? – Perguntei enquanto abria um copinho de salada de frutas.
- O quê? É sexy essa história de ele querer ser seu herói.
- Não tem nada disso. – Não mesmo, aliás, era eu que teria que vigiar Sam de dia e notar se alguém suspeito se aproximava, mas eu não disse isso. Não iria contar à Rebecca sobre a particularidade dele. Confiava inteiramente nela, mas prometi ao Sam que ele poderia confiar em mim, afinal, se cada um fosse contar um segredo para alguém de confiança, logo o mundo inteiro estaria sabendo. De uma forma, porém, ela estava certa. Ontem à noite depois que lemos o papelzinho azul, ele me prometeu que não iria deixar que ninguém encostasse o dedo em mim enquanto ele estivesse lá, esse era o problema, somente quando ele estivesse lá. – Ele só pode me fazer companhia à noite.
- Ótimo. Arrume umas velas, tudo fica tão mais pessoal... – Rebecca não entendia mesmo a questão.
- Você não tem jeito. – Suspirei.
- Vamos a um luau no sábado, amanhã?
- Fazer o quê?
- Sei lá, ver gente...
- Você vai beber e quer que eu garanta que não vai fazer nada do que se arrependa depois. – Concluí.
- Geralmente sim, mas decidi parar com a bebida.
- Que milagre foi esse?
- Sou uma mulher independente demais para ficar submissa à ela. – Levantei uma das sobrancelhas, não acreditei mesmo naquilo. – Ok... O Thiago disse que sou mais divertida quando não bebo.
- Vou pensar.
- Por favor, Mel! Vai ser divertido! Convida o Sam! – Ela pareceu achar essa idéia genial e começou a agitar as mãos.
- Nem pensar. – Já saí com alguns caras, mas nunca tinha convidado qualquer um deles para nada. Além do mais, era provável que o Sam risse de mim, adorava tripudiar quando podia. Eu me divertia bastante.
- Tudo bem, então vá sozinha.
- Para ficar de vela?
- Não te agüento, sabia? – Ela disse me abraçando de lado e encostando a cabeça no meu ombro. Realmente, admiti, eu era uma pessoa difícil de se lidar.
O resto das aulas foi mais tranqüilo de tolerar, eu já estava me acostumando a falar desaforos toda vez que percebia que estavam me observando demais ou fofocando sobre mim. Acho que eu estava até ficando boa nisso porque um garoto do oitavo ano me disse no pequeno intervalo entre as aulas que eu era a agente mais mal educada que ele já tinha visto. Rebecca me impediu de responder usando um sinal com um dos dedos da mão direita. É, confesso que havia passado dos limites.
Sofia também me flagrou dando más respostas ao pé da escada quando me encontrou na hora de irmos embora. Censurou-me com o olhar ameaçador por trás das lentes até a hora em que entramos no carro da Sarah.
- Vou precisar da casa amanhã. – Ela deu a sentença quando passou velozmente por um caminhão.
- Como assim? – Eu perguntei me segurando no cinto.
- Ela quer que a gente saia. – Sofie deduziu do banco de trás.
- Por quê? Não tenho para onde ir com esse pé desse jeito!
- Por que você não visita a Patrícia? Ela sente tanto a sua falta e faz tanto tempo que vocês não brincam. – Minha mãe era mais desatualizada da minha vida do que qualquer pessoa. Aumentei o volume de uma música muito boa que estava tocando no rádio, ela deu um tapa na minha mão que ainda estava no botão do volume e abaixou o som. – Você não deveria ouvir essas coisas.
- Verdade. Mais de 50% dos acidentes de trânsito ocorrem por causa de distrações que agentes externos causam ao motorista, como celulares, música alta... – Sofie começou a palestra, mas eu interrompi.
- Por que teremos que sair?
- Vou dar um jantar para o pessoal do trabalho nesse sábado. Preciso da promoção para a coluna com notícias de verdade. – Ela explicou ainda olhando para frente.
- Como nossa presença atrapalhará seu jantar? – Não fazia sentido que Sofia e eu tivéssemos que sair somente por causa de um bando de gente chata que acha que a minha música é coisa de delinqüente.
- Não vou ter tempo para cuidar de você da sua irmã. – Ao ouvir isso, minha vontade foi perguntar “E quando teve?”, mas aí ela começaria com aquele discurso do “Viu só como essa música te deixa mais revoltada?” E eu sabia que ela não nos queria lá porque chefes acham que filhos são um estorvo no trabalho de um jornalista policial, que precisa estar rapidamente no local certo sem se preocupar com mais nada.
- Sofie e eu podemos ficar no quarto.
- Não mesmo. – Ela retrucou lá atrás. Virei o pescoço para ameaçá-la com os olhos. – Não adianta me olhar assim. Amanhã é o dia em que o cometa que eu estou estudando vai passar e eu preciso vê-lo.
- Ficamos no meu quarto, você olha isso pela minha sacada.
- É uma emergência?
- O quê? – Ela sempre ligava um assunto a outro e eu tinha que ficar adivinhando aonde ela queria chegar.
- Se não é, não entro mais no seu quarto desde que meu pincel automático sumiu na sua bagunça e eu nunca mais achei. Estou pensando em construir um detector de metais para fazer uma busca por lá, só que estou com medo de ficar perdida também.
- Quando você perdeu isso?
- Ano passado.
Nossa, eu deveria ganhar um prêmio ou coisa assim.
- Chega. – Sarah exclamou impaciente. – Vocês arrumam amiguinhas para sair ou sei lá. O que custa me ajudar desta vez? – “Desta vez”? Fazemos tudo para ajudá-la desde sempre.
- Não estabeleço relações de amizade com as demais pessoas. – Sofie informou, não fiquei surpresa.
- Então pegue seu telescópio e peça à Mel para te levar a alguma praça, filhinha! – Ela sorriu olhando Sofia pelo retrovisor, definitivamente a tratava como se ainda fosse bebê.
- Eu não vou sozinha à uma praça à noite com a Sofia só para vermos uma estrela idiota. – Não mesmo, a não ser que o telescópio servisse de arma nuclear, nem pensar.
- Tecnicamente não é uma estrela, um cometa é um corpo menor composto... – Ela pareceu ficar ofendida por eu ter chamado o cometa de estrela.
- Tá bom, chega. Mãe, eu não vou sair de casa, só arrastada.
- Você quer complicar, Mellanie? Então vamos complicar. – Ela me ameaçou. Nada mais foi dito depois disso. Confesso que fiquei com um pouco de medo, minha mãe era capaz de qualquer coisa para ser promovida à coluna policial. Irônico.
Sofie tivera que sair para arrumar um lugar onde pudesse ver o tal cometa e eu tive que me contentar com a tevê. A novela mexicana não estava tão boa hoje, a atriz que interpretava a Kate Lúcia tinha brigado com alguém da produção e se recusara a gravar aquele capítulo, então basicamente Maria Antonieta ficou tramando contra uma boneca inflável. Desliguei a televisão e senti meus olhos brilhando quando contemplei a noite estrelada que havia crescido lá fora. Isso significava que a pessoa que eu estava esperando estava prestes a chegar. A campainha soou exatamente na hora em que visualizei a imagem dele em minha cabeça.
Estranhei a atitude de tocar a campainha, estava esperando que ele descesse pela sacada como gostava de fazer. Olhei pelo olho mágico para me certificar de que era ele, minha paranóia não estava me deixando ser imprudente de novo. Sam não estava lá. Um garoto louro e alto estava postado na minha porta carregando uma mala, seus cabelos em cachinhos quase escondiam os olhos castanhos claros, mas não escondiam o grande sorriso aconchegante que exibia. Era bastante bonito, mas, depois do Sam, não acredito que algum outro cara iria me surpreender nesse sentido. Sua aparência física não impediu que eu pensasse que poderia ser qualquer outro maluco armado. Peguei a primeira coisa que eu imaginei que serviria para enganá-lo. Abri a porta devagar.
- Quem é você?
- Posso entrar? – Ele perguntou calmamente.
- Só fique sabendo que também estou armada. – Fiquei observando sua reação, não parecia um psicopata. Com cautela, deixei que ele entrasse.
- Isso é um secador de cabelos? - Ele perguntou quando entrou e olhou para as minhas mãos. Pareceu achar tudo uma graça.
- É, mas eu não estava me referindo... – Tentei justificar. Ele riu mais uma vez.
- Meu nome é Noah. – Estendeu a outra mão que não estava segurando a pasta preta para que eu a apertasse.
- Ah, tá! O amigo da Sofie... – A voz da minha irmã soou na minha cabeça “Não somos amigos!” – Quero dizer, dupla pro trabalho...
- Então ela já falou de mim?
- Falou, depois de minhas milhares tentativas de formular perguntas diretas. – Ele riu de novo. Não sei que mania era essa dos garotos mais velhos ficarem rindo das minhas frases atrapalhadas.
- É, ela é bem engraçada nesse sentido. – Uau, ele achava Sofie engraçada, só isso me fez perceber que deveria ser outro gênio. Porque, nossa, somente um gênio conseguiria rir do outro, porque, para isso, seria necessário entendê-lo.
- Posso ajudar em alguma coisa?
- Sofia esqueceu a pasta no laboratório. – Levantou a pasta preta e brilhante que carregava na mão esquerda. – O endereço estava na etiqueta. – Em uma caligrafia muito fina pude ler:
Caro estranho,
Em hipótese alguma abra essa maleta.
Caso seja um ladrão, o sistema de segurança está ativado e isso é um aviso para evitar a perda do seu braço.
Favor entregar no seguinte endereço:
Uau, minha irmã era baixinha, mas estava enfrentando até ladrões imaginários. Eu também não deixava de enfrentar uma briga, deveríamos ter herdado isso de alguém, provavelmente do meu pai, já que a minha mãe não parece ser muito boa de discussão.
- Obrigada... Você fez o caminho todo até aqui só para entregar isso? Não deveria ter se incomodado, ela nem deve ter percebido que esqueceu a pasta, deveria ter entregado a ela no curso de hoje. – Claro que achei bastante legal da parte dele andar uma distância enorme para nos entregar aquela mala inútil, mas era bem mais prático entregar diretamente a Sofie.
- Oh, achei que ela iria precisar dela antes...
- Desculpe, não quis ser grossa. Obrigada. – Sorri. – Pena que ela não está aqui agora, foi ver se poderia achar um lugar para observar uma estrela amanhã.
- Um cometa? – Tentou entender o que eu queria dizer.
- Isso aí. – Mesmo tipo de gênio que a Sofia, se ele não fosse mais velho que eu, poderia torcer para que os dois tivessem um caso. Ele era bem atraente e seria bom para ela ter um namorado.
- Se quiser posso levá-la ao planetário amanhã. – Ele ofereceu. Parecia gostar bastante dela. Talvez eu tivesse a impressão de que a Sofie é isolada porque no colégio não há mais muitos gênios, acho que, no meio deles, ela deve ser mais sociável. Eles devem entendê-la, acho bom que fique mais perto de gente parecida com ela, quem sabe não se sinta tão sozinha?
- Não sei... Pode ser perigoso... – O meu desejo de que minha irmã pudesse finalmente ter uma vida normal, com amigos e talvez uma festa de aniversário que não envolva somente eu e a vovó não diminuiu meu medo de deixá-la sair sozinha com um cara que também não parecia o tipo que conseguia se defender. Apesar de ser bem bonito, não era tão musculoso quanto o Sam.
- O quê? Você acha que eu e a sua irmã...?
- Quê? Não! – Era um absurdo eu desconfiar disso. Sofie tinha apenas treze anos e Noah parecia ter uns dezenove. Que eu saiba, pedófilos costumam ser bem mais velhos e eu percebi que ele só estava tentando ser amigável. – É só que... É à noite e tal...
- Ah, mas o planetário é tão divertido! – Eu certamente tinha outra idéia de diversão. – Você poderia ir também...
Fiquei na dúvida se isso era um convite para sair ou se ele só estava tentando se certificar de que eu não havia entendido errado e pensado que ele e a Sofie iriam fazer outras coisas debaixo das estrelas.
- Fique parado. – Sam ameaçou quando apareceu do nada no corredor segurando algo que parecia ser um cano enferrujado. Tinha pulado a sacada de novo.
- Sam, ele é só um amigo da Sofia. Abaixe isso. – Tive dó do Noah, era a segunda vez que alguém lhe ameaçava com uma arma hoje. Se bem que eu não sabia se um secador de cabelos contava como arma.
Sam abaixou o cano com cautela, ainda estava desconfiado se eu não estava dizendo isso forçada. Caminhou até o meu lado e passou o outro braço sobre meus ombros. Ficou observando Noah, que deu uma recuada ao ver o homem de mais de 1,80m encarando-o.
- Bem, acho que não, né? Enfim, se quiser que eu leve a Sofia, ligue. - Deixou um cartãozinho em cima da mesinha de centro e começou a caminhar em direção à porta. Tive a impressão de que o susto de ver alguém surgindo no meio da sala o ameaçando com um cano já havia passado e pude notar um leve sorriso nos lábios do Noah. Ele era um garoto da razão enquanto Sam era, visivelmente, da força física e eu sei que os inteligentes sempre pensam que o cérebro supera os músculos, Sofie era exemplo disso.
- Pode deixar... Obrigada mais uma vez. – Respondi tentando me livrar do braço do Sam para poder acompanhar Noah até a porta, mas ele não deixou. Ele mesmo passou à minha frente e fez questão de fechar a porta para o loiro, que não pareceu se importar. – Por que fez isso? – Perguntei quando a porta já estava fechada e ele já tinha ido embora.
- Não pode ficar forçando o pé. – Respondeu mais descontraído, a face de repulsa havia sumido.
- Ele só estava tentando ser educado.
- Educado demais para mim.
- O que quer dizer? – Ele não estava seriamente duvidando de um amigo nerd da Sofie, estava?
- Ele estava te convidando para sair.
- E por que isso te incomoda? – É, tinha uma resposta que eu queria ouvir.
- Porque eu prometi que iria cuidar da sua segurança e não conheço esse cara. – Não era essa a resposta que eu queria escutar, me irritei.
- Está me proibindo de sair com ele? – Eu odiava quando tentavam me impedir de fazer alguma coisa. Como eu disse, tenho o gênio muito forte e não aceito ordens assim tão fácil.
- Não, se quiser sair, saia, mas não poderei te acompanhar. Duvido que ele possa cuidar de você e da sua irmã caso aconteça alguma coisa. – Falou tranquilamente enquanto se sentava no sofá, ele sabia que havia me ganhado no papo. Eu era desafiadora, mas não a ponto de colocar a segurança da minha irmã em jogo. Sentei-me ao seu lado.
- Eu não vou.
- Não?
- Não.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, essa discussão pareceu esfriar as conversas que, em tão pouco tempo, tínhamos nos acostumado a ter. Eu comecei a refletir se o perigo era assim tão próximo, se havia chances de sermos atacadas até mesmo enquanto víamos uma estrela estúpida.
- Está brava comigo? – Ele perguntou depois de algum tempo que passamos calados.
- Não. – Respondi sem pirraça, mas ele levava minhas frases curtas como sinal de que havia alguma coisa me incomodando.
- Então o que é?
- Nada.
- Está com medo? Olha, Mel, eu não quis te assustar... Não acho que também seja dessa maneira, que possa acontecer alguma coisa a qualquer hora, eu só estou tentando ser cuidadoso. – Olhou para mim como se estivesse pedindo desculpas. – Você pode ir aonde quiser.
- Eu não queria ir ver essa estrela idiota.
- Tem certeza?
- Tenho. – Ele olhou para frente chateado, acho que se sentia mal quando eu dava essas respostas incompletas. Decidi parar de ser chata com alguém que só estava querendo me ajudar. – Você acha que tem problema se ele levar a Sofie?
- O que ele tem com a sua irmã? – Ficou um pouco assustado, como fiquei quando pensei na hipótese de os dois terem alguma coisa, mas também ficou satisfeito por eu ter resolvido falar alguma coisa.
- Nada. Parece que eles estão ficando amigos. Quero dizer, se conhecem há pouco tempo, mas estão se dando bem.
- Como eu e você? – Olhou intensamente para mim ao dizer isso.
- Acho que sim... – Dei de ombros. – Espera, está tentando dizer que é meu amigo? – Perguntei em tom brincalhão, tínhamos essa espécie de competição para contrariar o outro.
- É, mas agora lembrei que você me deixou na chuva ontem... – Ele sorriu.
- Sem graça. – Fiz uma careta.
Continuamos a conversar animadamente a partir daí. Acho que ficamos mesmo amigos em tão poucos dias, isso me deixava mais feliz e, às vezes, me fazia esquecer dos tantos problemas e indagações que tinha naquele momento. Comparávamos nossas preferências e discutíamos sobre música, televisão, filmes e, até mesmo, nossos nomes preferidos para colocar em um filho. Nossa conversa era tão divertida que nem percebíamos a hora passar e só fomos interrompidos pela ligação da Sofia avisando que já tinha ido diretamente para o centro.
- Então estão achando que você é uma agente? – Sam riu bastante quando narrei meu dia no colégio. – Desse tamanhinho? – Perguntou em tom de zombaria. Taquei uma almofada em sua direção e ele a pegou novamente. Tinha os reflexos bem rápidos.
- Eu poderia ser uma agente se eu quisesse... – Isso era totalmente mentira, mas, como sempre, não quis dar o braço a torcer.
- Sei. E iria combater quem? Os sete anões? – Sorriu novamente ao dizer isso. Não achei graça.
- Tamanho não quer dizer nada, tá? E, também, eu sou relativamente normal para as garotas da minha idade... Você que é alto demais.
- Que bom. Porque se eu fosse como aquele loirinho... Você é que teria que me proteger. – Zombou de novo.
- Esqueça o Noah. E eu te protejo de dia...
- Ah é? Essa é nova. Como? – Ele sorriu e desviou o olhar do jogo que estava passando na televisão para me ver.
- Eu fico observando se não tem ninguém suspeito por perto... Hoje à tarde mesmo, percebi vários passos aqui em cima, então tentei ouvir pela sacada o que estava acontecendo, era a voz daquela May. Passou a tarde com você.
Ele não disse nada por algum tempo, mas sei que a minha preocupação tinha lhe tocado bastante. Sam nunca tivera alguém que olhasse por ele quando ele, bem, era outro Sam.
- Então ficamos assim? Eu te protejo de dia e você me protege à noite? – Perguntei para quebrar o silêncio.
- Claro, pequena, a gente se completa. – Ele sorriu, desta vez, com simpatia e acariciou os meus cabelos no topo da minha cabeça. É claro que se fosse alguém diferente hoje à tarde, eu não poderia fazer nada com o pé engessado e, provavelmente, não poderia mesmo se estivesse sem o gesso. O fato é que eu gostava de pensar que estava retribuindo o favor que ele estava me fazendo. Afinal, ele não precisava ficar aqui tomando conta de mim, eu quebrei o tornozelo porque fui teimosa e, no fim das contas, Sam não era a causa do que havia acontecido, era eu mesma. Ele estava me ajudando por pura bondade, mesmo que dissesse ser uma pessoa, ou personalidade, movida por ódio e vingança. – O que está pensando?
- Na Sofie... Ela queria mesmo ver o cometa amanhã. – Menti.
- Por que ela não vê daqui mesmo?
- Mamãe quer nos expulsar de casa amanhã à noite.
- Por quê? – Ele colocou a televisão no mudo e virou-se totalmente para me encarar.
- Ela vai dar um jantar amanhã para os executivos do jornal onde trabalha.
- Onde você estava pensando em ficar? – Ele franziu as sobrancelhas.
- Eu ia ligar para a Rebecca, mas aí lembrei que ela vai a um luau. É por esse motivo que eu pensei em ir com o Noah e a Sofie ao planetário. – Expliquei olhando diretamente para o seu rosto bonito.
- Não quer ficar comigo? – Ele quase sempre tirava as conclusões erradas das coisas. Só porque eu não tive coragem de pedir para que ele ficasse comigo em outro lugar que não fosse a minha casa, não significava que eu não queria.
- Não é isso... É que pensei que, bem, amanhã é sábado.
- O que tem?
- Você poderia estar ocupado.
- Você é esperta demais na maior parte do tempo, mas às vezes é tão boba.
- Isso quer dizer exatamente o quê?
- Que você fica comigo amanhã. – Disse como se o assunto estivesse encerrado. Eu normalmente iria contestar, mas eu não tinha mais onde ficar se não fosse com o Sam.
Pensei o quão estranho isso seria. Afinal, apesar de estar sozinha com ele na casa dele não parecer lá muito diferente de estar sozinha com ele na minha casa, a mim soava como coisas muito distintas. Em casa, eu me sentia tão à vontade que não pensava direito em como essa situação era embaraçosa. Na casa dele, eu sei que ficaria encabulada e envergonhada e vou querer ir embora na metade do jantar da Sarah, o que a deixaria tão nervosa quanto se soubesse que eu fico sozinha com um vizinho lindo à noite dentro de casa. Ele ficou me olhando tentando imaginar qual era o problema desta vez.
- Você não precisa ir se não quiser...
- Não é isso.
- Então o que é? Mel, se vamos tentar essa de amigos, precisa ser franca comigo.
- É que... – Eu não sabia como dizer sem que ele se sentisse ofendido, afinal, se eu me expressasse mal poderia parecer que eu estava pensando que ele queria me levar para a casa dele para se aproveitar de mim. – Eu não sei se a minha mãe vai gostar disso...
- Do quê?
- Eu e você... Sozinhos.
Eu sei que isso não esclarecia muito as coisas, mas ele fez uma expressão de quem havia entendido o problema.
- E se não ficarmos sozinhos?
- Quê? – Não tinha entendido direito porque tinha sido pega entre reflexões.
- Vamos ao luau.
Apesar de a noite finalmente certa para se ter um bom sono, os meus sonhos foram dotados das mesmas imagens estranhas que os habitaram na noite anterior. Em meio a tanto horror, não pude ouvir a chegada de Sarah e Sofie na calada da noite. Também não me perguntei a reação da minha irmã quando abriu a porta do quarto, o único o qual eu não havia entrado para organizar. Aquilo não mais me importava.
Eu estava habituada a reclamar de minha rotina maçante em que eu, não sei porque motivos, brincava incessantemente de casinha, cuidando da casa e da minha irmã. Era um sentimento de desalento infinito. Por vezes, eu implorei ao destino que mudasse as coisas, que tirasse a sensação de vazio, de mesmice, de tédio vital de dentro de mim, nunca imaginei, contudo, que seria dessa maneira.
Eu, talvez, esperasse um acontecimento novo, uma situação inesperada ou uma emoção embriagante, mas não esperei, em momento algum, um episódio tão sombrio. Eu certamente não estava temendo pela minha própria vida, embora não quisesse morrer antes de ter algum sentimento de realização. O meu maior medo era de que mais gente pagasse o preço da minha procura. O Sr. Felix era o exemplo mais recente dessa fatalidade, o primeiro, mas ninguém poderia garantir que seria o último.
Foi tomada por esses pensamentos que consegui acordar na manhã neblinosa do dia seguinte. Os pássaros não cantaram naquele dia. Apesar da aurora crescente, ainda estava meio escuro lá fora, deveria ter acordado cedo demais. Levantei assim mesmo, não iria forçar o sono que desaparecera após a leitura daquela anotação na noite passada.
Esquentei uma caneca de leite e fiquei remexendo-o com a colher durante quase uma hora, como eu tinha o hábito de fazer. O redemoinho branco dentro do recipiente representava as idéias passando em círculos pela minha cabeça.
Não sabia o que levaria alguém, quem quer que fosse, a procurar por mim. Aliás, eu costumava ser um repelente de pessoas. Não que eu me importasse, eu já tinha os melhores amigos que alguém iria querer, mas isso deveria significar que eu não tenho motivos para ser caçada. E, no entanto, de todas as pessoas que moravam no apartamento 501 do condomínio Eldorado, eu era a mais provável de ser o alvo. Se quisessem pegar a Sarah, o último lugar que iriam procurar seria em casa, afinal, ela passa a maior parte do tempo fora. E Sofie... Por que raios iriam querer Sofie? Ela tem apenas treze anos e mal conversa com as outras pessoas, gosta de fingir ser invisível às vezes, porém é a única que possui um atributo que realmente chama a atenção. As poucas vezes em que ela falava em público eram suficientes para atrair olhares admirados e assustados com tamanha genialidade em tão pequena pessoa. Tremulei perante a hipótese de desejarem Sofie. “Não!”, a voz da minha consciência rugiu em minha cabeça. Preferia que fosse eu.
Escutei a porta do banheiro principal rangendo, espantei-me com o hábito de Sofia de acordar tão cedo. Ela colocou a cabeça para fora.
- Mel! – Exclamou muito brava e apareceu do lado da porta vestindo um robe prateado que ficava grande demais para ela.
Eu sabia o que ela iria dizer, pelo tom irritado que usara, deveria estar prestes a pedir explicações sobre o furacão que passara em seu quarto ontem à tarde. Eu teria que inventar alguma coisa para não preocupá-la ou assustá-la. Ainda que agisse como uma adulta, era errado atormentar alguém tão jovem com isso tudo. Tentei me preparar para mentir, era péssima nisso.
- Sim? – Eu respondi procurando evitar o nervosismo, respirei fundo.
- O que aconteceu aqui ontem? – Ela perguntou seriamente.
- Não sei... O que aconteceu aqui ontem? – Eu tinha que me livrar desse costume de repetir a pergunta que me fora feita a fim de ganhar mais tempo para pensar na mentira que iria contar, era muito óbvio, mas Sofie se confundiu. Seus pensamentos seguiam uma linha reta e objetiva, portanto ficava um pouco embaraçada quando lhe respondiam uma pergunta com outra pergunta.
- Mais isso foi o que lhe perguntei!
- O que você acha que aconteceu ontem? – Talvez se a teoria dela envolvesse ETs eu não teria que inventar nada, só confirmar.
- Por que você desorganizou o banheiro? O que estava procurando? – Ela me jogou aquele olhar da Inquisição.
O banheiro? Eu achei que ela iria dar um chilique por causa da bagunça em seu quarto! E eu havia arrumado o banheiro ontem... Ou pelo menos tentado.
- O que aconteceu no banheiro?
- Os xampus estão fora da ordem alfabética, o desinfetante está no lugar errado na gaveta, a etiqueta do tapete está do avesso... – Ela começou a enumerar centenas de detalhes, os quais, na pressa, eu não prestara muita atenção. Decidi me fazer de desentendida.
- Tenho certeza de que foi algum engano da faxineira.
- Tem um vidro de catchup dentro do armário. – Ela cruzou os braços.
- Ah. – Essa foi inesperada. – Achei que você iria pirar por causa do quarto. – Resolvi ser sincera.
- O que você fez no meu quarto? – Perguntou, pela primeira vez, passando pelo pânico. Agora sim ela tinha pirado.
- Você ainda não entrou lá? – Achei estranho.
- Eu dormi lá.
- Não notou nada diferente? – Franzi o cenho.
- Não. Você entrou lá? O que queria? – Ficou pensativa de repente. – Meu novo detector de espectros que construí ontem não percebeu a sua presença. – Sentiu-se um pouco decepcionada.
- Eu não entrei lá. – Balancei a cabeça negativamente para reafirmar a frase.
Ela arregalou os olhos por trás dos óculos grossos. Se fosse um robô, fumacinha estaria saindo de sua cabeça.
- Então por que mencionou o quarto? Você quer me enlouquecer? – Perguntou irritada sentando-se à mesa.
- Não. Acho que... Acho que sonhei, desculpe.
Achei esquisitíssimo que todos os cômodos da casa tivessem sido revirados com a única exceção do quarto da Sofia. Eu não tinha uma teoria para explicar isso.
- Cadê a Sarah? – Perguntei ao tentar desviar a atenção dela, já estava muito desconfiada olhando para mim. Ela encarou o relógio na parede da cozinha.
- Vai acordar daqui a 16 minutos e 32 segundos. – Disse sem hesitar. Perguntei-me como ela sabia disso. – Você acordou cedo.
- Não dormi direito.
- Você está grávida? – Ela me fitou com seriedade.
- O quê? – Achei um absurdo. – Não!
- A insônia é muito comum no início da gestação, atinge 42,56% das mulheres na primeira gravidez. – Informou-me.
- Não estou grávida. – Disse cada palavra pausadamente para dar ênfase.
- Oh. – Ela deu de ombros. Parecer achar interessante que meu distúrbio do sono não tivesse relação com nenhuma gravidez. – Meus cereais não estão organizados de acordo com a quantidade de vitaminas B12. – Reclamou ao notar outro detalhe que deixei passar na prateleira da cozinha.
- Com quem você estava ontem? – Ela me olhou incrédula ao ouvir isso.
- Estou tendo um déjà vu.
- Quê?
- Já tivemos essa conversa ontem. – Sofie respondeu enquanto enchia uma tigela de um cereal marrom.
- Quero saber o nome desse seu amigo. – Falei após, durante segundos, pensar na frase mais objetiva que consegui.
- Noah. – Ela disse como se nem fizesse questão. Minha irmã tinha a mania estranha de não achar muito sentido nessas perguntas que ela julgava sem importância.
- Quando o conheceu? – Franzi as sobrancelhas.
- Antes de ontem. – Ela disse e acrescentou leite à vasilha de cereais. Ela também tinha o hábito engraçado de responder essencialmente a pergunta que lhe fora feita e pronto, sem mais detalhes. Isso dificultava nossa comunicação, eu queria saber exatamente quem era esse Noah.
- E já virou amigo dele? – Definitivamente muito estranho.
- Não somos amigos. Temos uma relação estritamente profissional. – Ela me corrigiu sem pestanejar.
- E de onde veio esse cara? – Sim, eu estava preocupada com estranhos que se aproximavam da minha irmã nesses últimos dias. Sofie me encarou tentando entender minha linguagem.
- Ele é do curso. Temos que desenvolver um projeto em duplas. Por que está tão interessada?
- Nada. – A história das duplas já tinha fechado a questão. Ele estava com a Sofie porque fora obrigado pelo professor a fazer dupla com alguém, não deveria ter nenhum interesse nela além disso. Acho que estou ficando paranóica.
- Você vai à escola?
- Vou.
- Então apresse-se. Sarah vai acordar em um minuto e meio. – Ela concluiu olhando para o relógio na parede de azulejos brancos da cozinha. – Ela demora apenas oito minutos para se arrumar.
Bebi o leite em um só gole ao ouvir essas palavras e avancei ao corredor para me vestir, ainda estava de camisola. Demorei alguns minutos para escolher a roupa e arrumar os cabelos que hoje amanheceram mais lisos e domados, um bom sinal ao começar o dia.
Quando saí, minha mãe já estava destrancando a porta com uma xícara de café na mão que ela tomava durante a luz vermelha do semáforo. Sofie se postava ao seu lado, já vestida e impecavelmente arrumada. Admirei-me como suas roupas estavam sempre limpas e bem passadas. Era também incrível a maneira como se ajeitava rápido, talvez eu devesse, assim como ela, ser mais organizada.
Não houve conversa durante o trajeto até a escola. Aparentemente, algo deixara Sarah revoltada no jornal em que trabalhava cobrindo a coluna de eventos.
- Querem que eu cubra o evento em que vai uma tal Paola Lince ao invés de me darem o caso do Felix. – Alegou irritada e, depois disso, ninguém mais disse nada. Me lembrei da Rebecca, ela era fã dessa mulher.
O colégio estava igual, aliás, eu faltei somente um dia seria estranho se estivesse diferente. O prédio cor creme de quatro andares erguia-se entre algumas árvores altas e grossas e entre outras construções de concreto. Alguns pombos se equilibravam nos fios da rede elétrica e outros se banhavam na grande fonte que havia no centro do pátio aberto e delimitado por cercas de ferro onde vários alunos conversavam animadamente antes do começo das aulas. Sofie se despediu dizendo que teria que fazer uma pesquisa na biblioteca e me deixou sozinha na frente do grande portão escuro e de metal. Embora eu não notasse nenhuma diferença física no espaço escolar, estava notando grande diferença no comportamento dos estudantes ao redor.
A massa de pessoas usando uniformes azuis e brancos, cores da instituição, estava me encarando incessantemente enquanto eu entrava. Foi um pouco chocante essa recepção, já que eu não era exatamente o tipo popular que chamava a atenção aonde quer que fosse. Pensei que isso poderia ser o resultado de uma ilusão causada pela paranóia que eu tinha adquirido de uns tempos para cá, mas após andar por mais alguns minutos percebi que os alunos estavam mesmo olhando para mim. Perguntei-me se minha roupa estava suja ou algo assim, contudo não consegui visualizar sujeira nenhuma.
Eu já estava ficando muito irritada com a quantidade de olhares e cochichos que me seguiam quando avistei Rebecca e Lean andando próximos a escultura de duas crianças lendo um livro gigante que se postava no pátio de dentro.
- Mel! – Lean exclamou animado ao me avistar.
- Oi... – Respondi olhando indecisa para os lados. – É impressão minha ou está todo mundo me encarando? – Indaguei um pouco receosa ao perceber que um grupo de alunos mais velhos passou por mim dando risadinhas.
Rebecca fuzilou Lean com um olhar de censura. Continuamos andando.
- Conta para ela! – Ela exclamou bastante nervosa, ele desviou o olhar.
- Contar o quê? – Eu perguntei preocupada, já estava ficando encabulada com os olhos voltados para mim. O bom é que, como já estávamos no pátio interno, não havia tanta gente.
- Diz para ela, Lean. – Rebecca falou com o tom de voz ameaçador. Ele me fitou com culpa, depois olhou para os próprios pés.
- B-bem Mel... – Começou gaguejando. – E-eu não q-queria causar i-isso, eu...
- Diz logo. – Falei seriamente.
- Ele espalhou para o colégio inteiro que, para salvar seu vizinho, você lutou com um assassino armado que queria explodir seu prédio. – Rebecca disse em tom seco e sem hesitar. – Agora todos acham que você é uma daquelas justiceiras de filmes, a mulher-aranha ou coisa assim. Esse seu pé engessado só comprovou a história, por isso estão olhando.
Apoiei meu rosto sobre as mãos tentando contar até dez e evitar que eu matasse o Lean. Essa história tinha 0% de verdade. Eu não lutei com ninguém, muito menos com um assassino armado e, ainda menos, era uma justiceira. Eu era apenas uma garota normal que fez a burrice de sair de casa desrespeitando ordens e teve o azar de trombar com um idiota que não sabe distinguir um 7 de um 1 quando ele estava descendo as escadas. Aliás, se ele soubesse fazer essa distinção eu, provavelmente, seria a pessoa naquele hospital, não o Sr. Felix.
- Mel, eu posso explicar... – Ele disse após os segundos em que eu parei de andar e fechei os olhos pedindo para ter compaixão e poupar Lean de um soco. – Eu meio que me empolguei quando fui explicar porque sua foto apareceu na tevê e...
- Empolgou-se? Você estava visivelmente fumado quando inventou essa história! – Agora as poucas pessoas que não estavam me encarando antes passaram a contemplar meu ataque público de histeria.
- E isso não é tudo! – Rebecca comentou, como ela gostava de colocar lenha na fogueira! Mas eu preferia que me contassem tudo logo mesmo. Olhei para ela. – As pessoas que ouviram essa loucura que o Lean contou resolveram acrescentar as próprias modificações na história, você sabe, incrementar os próprios detalhes... Agora várias versões ainda mais sem nexo estão correndo por aí.
Imaginei o que poderia ser ainda mais insano que a história de eu, com meus 1,65m, ter enfrentado um criminoso armado e partidário do terrorismo a fim de salvar meu vizinho.
- Ouvi hoje no banheiro feminino que anda correndo pelas más línguas que você é uma agente secreta do governo infiltrada na escola para nos livrar de uma ameaça terrorista.
- O que colocaram na água desse lugar? – Esganicei ao pensar que certamente alguém tinha contaminado a caixa d’água do colégio com algum alucinógeno ilícito.
- Mais cedo no pátio estavam dizendo que a Mel salvou o vizinho porque mantinha um caso com ele sem o conhecimento da esposa. – Lean informou.
- O Sr. Felix tem mais de cinqüenta anos! – Rebecca abriu a boca para, provavelmente, fazer a objeção de que isso não comprovava que o boato era falso. - E é viúvo! – Completei antes que ela falasse algo. Eu estava totalmente transtornada com todas as mentiras sobre o que houvera antes de ontem. – Como as pessoas acreditaram nisso? Está na cara que não é verdade!
- Ah Mel... – E ela usara o tom da compaixão de novo. – Você sabe que se isso tivesse sido estampado em um jornal muitos duvidariam, mas a fofoca tem uma credibilidade extraordinária por aqui. Mas, se quiser, eu seguro o Lean e você bate. – Lean tremeu ao ouvir isso. Tinha muito medo dela visto que ela possuía o costume de gritar muito com ele.
- Me desculpa mesmo, Mel... Eu não quis te causar problemas. Só achei que te ajudaria com o grêmio, achei que te dariam mais atenção se você fosse uma heroína...
Heroína... Era isso o que ele estava usando.
- Tudo bem, Lean. – Suspirei. Estava muito nervosa, mas percebi que ele não fez de má fé. – Só nunca mais faça isso.
- Pode deixar. – Ele respondeu. Parecia estar se sentindo muito culpado.
- Se ele fizer – Rebecca fez questão de ameaçar – eu mesma usarei a tesoura de jardinagem do meu pai para cortar algo que ele não vai gostar.
Eu e Lean arregalamos os olhos e nos voltamos para ela, assustados.
- O quê foi? Eu estava falando da língua... – Não me convenceu.
- Mel! – Virei-me para encarar a última criatura que queria ver naquele momento.
- O que você quer?
- Queria saber se você quer tirar uma foto junto comigo para aparecermos na primeira página do Folhetim. – Patrícia Petry perguntou animadamente ao aparecer com um laço cor-de-rosa preso no pescoço. Parecia mais uma coleira.
Folhetim é o jornal falido da escola. Parecia uma daquelas revistas de fofocas de celebridades só que estrelado pela “elite” do colégio. Noticiava todas as festas, comentava todas as roupas e quem foi flagrado almoçando com quem. Tenho a teoria de que é um grande fracasso porque somente quem aparece nele é que não usa o jornal para equilibrar as mesas mancas. Agradeci aos céus por aquela droga ser semanal e não diária. As eventuais coisas boas que haviam impressas eram umas piadinhas que Lean postava de vez em quando na pequena coluna que conseguira: “O Cafofo “.
- Por quê? – Pensei nos motivos que levariam uma pessoa que geralmente fingia que não me conhecia a querer tirar uma foto comigo e mostrar para todo mundo.
- Não acredito em nada do que andam falando... Mas agora você é o último assunto que todos comentam por aqui. Pensei que daria mais Ibope para o Folhetim se tirássemos uma foto juntas, que tal? – Seu sorriso de dentes arreganhados me assustou. – A manchete poderia ser: “Patrícia e Melissa salvam o grêmio estudantil”.
- Meu nome é Mellanie. – Corrigi sem fazer tanta questão. E imaginar que essa criatura se dizia minha amiga alguns anos atrás. O mundo estava mesmo perdido.
- Que seja. – Ela sorriu deslumbrada.
- Se quiser salvar o grêmio vai ter que retirar todas as pessoas nojentas que estão nele, incluindo você. – É, eu já estava irritada sem essa história de foto, não precisava mais dessa.
- Isso é um sim? – Ela esganiçou dando pulinhos. Achei incrível sua capacidade de conseguir ouvir somente as palavras que lhe convinham. Na minha frase inteira, deve ter escutado apenas “grêmio”, “pessoas” e “você”.
- Isso é um “se manca”. – Saí andando e deixei-a sozinha petrificada no lugar onde estava. Com essa mania de ouvir somente o que queria, levaria segundos para entender a minha frase.
- Acho que, depois dessa, ela vai ficar algum tempo sem incomodar. – Rebecca disse tentando me acompanhar. – Talvez um dia. – Sorriu maliciosa.
Os horários que se passaram depois da minha chegada foram torturantes. Algumas pessoas riam ao me ver, outras diziam coisas como “corajosa” ou “mandou bem”, algumas me apelidaram de “a outra”, uma menina da 6ª série até pediu para que eu assinasse seu caderno da Barbie. Isso tudo além dos incessantes olhares e cochichos que eu tive que agüentar e que as pessoas nem se importavam em disfarçar. Pela primeira vez, senti dó das celebridades em geral, se eu já estava irritadíssima somente por receber a atenção da parte do colégio que acreditava fielmente na fofoca, imagine o que um famoso de verdade não passava ao ir apenas à lavanderia.
No intervalo, Rebecca e eu preferimos comer sozinhas sentadas nas escadas dentro do prédio para evitar as pessoas que estavam lá fora. Sofie teve que continuar a pesquisa na biblioteca e Lean teve o azar de atirar uma borracha pela janela sem querer e acertar justamente a cabeça da diretora Carla, por isso estava na supervisão. Assim, nosso recreio estava meio solitário, aproveitei para contar as últimas para Rebecca.
- Quem você acha que entrou no seu apartamento? – Ela perguntou depois que me ouviu.
- Não sei.
- Como entraram?
- Não sei.
- Por que estão te caçando?
- Não sei.
- Por que só não reviraram o quarto da Sofie?
- Já disse que não sei!
- Nossa, a coisa está feia mesmo. Acha que foi o Sam? Ele é o único que pode entrar sem ser pela porta...
- Não, ele está me ajudando. – Refleti.
- Você acha que é algum tipo de vingança? – Ela deu a sugestão.
- O quê? – Minha voz saiu mais fina do que o normal. – O que eu fiz para quererem se vingar de mim?
- Sei lá... Talvez tenham ouvido essa história do Lean de que foi você que impediu o assalto e tal...
- Não faz sentido. Eles já estavam procurando por mim desde o começo. E também... Quem além desse povo sem noção acreditaria nisso? Quero dizer, olhem para mim! Eu tenho cara de combatente?
- Não. Você parece delicada demais para se jogar na frente de uma bala.
- Não sou delicada demais. - Essa frase soou que eu era meio fresca, eu não sou assim. - Eu só não tenho o tipo físico necessário para desenvolver a habilidade caça-terroristas. – Ela concordou comigo balançando a cabeça.
- O Sam vai te proteger agora? – Disse naquele tom risonho e, ao mesmo tempo, safado.
- Dá pra parar? – Perguntei enquanto abria um copinho de salada de frutas.
- O quê? É sexy essa história de ele querer ser seu herói.
- Não tem nada disso. – Não mesmo, aliás, era eu que teria que vigiar Sam de dia e notar se alguém suspeito se aproximava, mas eu não disse isso. Não iria contar à Rebecca sobre a particularidade dele. Confiava inteiramente nela, mas prometi ao Sam que ele poderia confiar em mim, afinal, se cada um fosse contar um segredo para alguém de confiança, logo o mundo inteiro estaria sabendo. De uma forma, porém, ela estava certa. Ontem à noite depois que lemos o papelzinho azul, ele me prometeu que não iria deixar que ninguém encostasse o dedo em mim enquanto ele estivesse lá, esse era o problema, somente quando ele estivesse lá. – Ele só pode me fazer companhia à noite.
- Ótimo. Arrume umas velas, tudo fica tão mais pessoal... – Rebecca não entendia mesmo a questão.
- Você não tem jeito. – Suspirei.
- Vamos a um luau no sábado, amanhã?
- Fazer o quê?
- Sei lá, ver gente...
- Você vai beber e quer que eu garanta que não vai fazer nada do que se arrependa depois. – Concluí.
- Geralmente sim, mas decidi parar com a bebida.
- Que milagre foi esse?
- Sou uma mulher independente demais para ficar submissa à ela. – Levantei uma das sobrancelhas, não acreditei mesmo naquilo. – Ok... O Thiago disse que sou mais divertida quando não bebo.
- Vou pensar.
- Por favor, Mel! Vai ser divertido! Convida o Sam! – Ela pareceu achar essa idéia genial e começou a agitar as mãos.
- Nem pensar. – Já saí com alguns caras, mas nunca tinha convidado qualquer um deles para nada. Além do mais, era provável que o Sam risse de mim, adorava tripudiar quando podia. Eu me divertia bastante.
- Tudo bem, então vá sozinha.
- Para ficar de vela?
- Não te agüento, sabia? – Ela disse me abraçando de lado e encostando a cabeça no meu ombro. Realmente, admiti, eu era uma pessoa difícil de se lidar.
O resto das aulas foi mais tranqüilo de tolerar, eu já estava me acostumando a falar desaforos toda vez que percebia que estavam me observando demais ou fofocando sobre mim. Acho que eu estava até ficando boa nisso porque um garoto do oitavo ano me disse no pequeno intervalo entre as aulas que eu era a agente mais mal educada que ele já tinha visto. Rebecca me impediu de responder usando um sinal com um dos dedos da mão direita. É, confesso que havia passado dos limites.
Sofia também me flagrou dando más respostas ao pé da escada quando me encontrou na hora de irmos embora. Censurou-me com o olhar ameaçador por trás das lentes até a hora em que entramos no carro da Sarah.
- Vou precisar da casa amanhã. – Ela deu a sentença quando passou velozmente por um caminhão.
- Como assim? – Eu perguntei me segurando no cinto.
- Ela quer que a gente saia. – Sofie deduziu do banco de trás.
- Por quê? Não tenho para onde ir com esse pé desse jeito!
- Por que você não visita a Patrícia? Ela sente tanto a sua falta e faz tanto tempo que vocês não brincam. – Minha mãe era mais desatualizada da minha vida do que qualquer pessoa. Aumentei o volume de uma música muito boa que estava tocando no rádio, ela deu um tapa na minha mão que ainda estava no botão do volume e abaixou o som. – Você não deveria ouvir essas coisas.
- Verdade. Mais de 50% dos acidentes de trânsito ocorrem por causa de distrações que agentes externos causam ao motorista, como celulares, música alta... – Sofie começou a palestra, mas eu interrompi.
- Por que teremos que sair?
- Vou dar um jantar para o pessoal do trabalho nesse sábado. Preciso da promoção para a coluna com notícias de verdade. – Ela explicou ainda olhando para frente.
- Como nossa presença atrapalhará seu jantar? – Não fazia sentido que Sofia e eu tivéssemos que sair somente por causa de um bando de gente chata que acha que a minha música é coisa de delinqüente.
- Não vou ter tempo para cuidar de você da sua irmã. – Ao ouvir isso, minha vontade foi perguntar “E quando teve?”, mas aí ela começaria com aquele discurso do “Viu só como essa música te deixa mais revoltada?” E eu sabia que ela não nos queria lá porque chefes acham que filhos são um estorvo no trabalho de um jornalista policial, que precisa estar rapidamente no local certo sem se preocupar com mais nada.
- Sofie e eu podemos ficar no quarto.
- Não mesmo. – Ela retrucou lá atrás. Virei o pescoço para ameaçá-la com os olhos. – Não adianta me olhar assim. Amanhã é o dia em que o cometa que eu estou estudando vai passar e eu preciso vê-lo.
- Ficamos no meu quarto, você olha isso pela minha sacada.
- É uma emergência?
- O quê? – Ela sempre ligava um assunto a outro e eu tinha que ficar adivinhando aonde ela queria chegar.
- Se não é, não entro mais no seu quarto desde que meu pincel automático sumiu na sua bagunça e eu nunca mais achei. Estou pensando em construir um detector de metais para fazer uma busca por lá, só que estou com medo de ficar perdida também.
- Quando você perdeu isso?
- Ano passado.
Nossa, eu deveria ganhar um prêmio ou coisa assim.
- Chega. – Sarah exclamou impaciente. – Vocês arrumam amiguinhas para sair ou sei lá. O que custa me ajudar desta vez? – “Desta vez”? Fazemos tudo para ajudá-la desde sempre.
- Não estabeleço relações de amizade com as demais pessoas. – Sofie informou, não fiquei surpresa.
- Então pegue seu telescópio e peça à Mel para te levar a alguma praça, filhinha! – Ela sorriu olhando Sofia pelo retrovisor, definitivamente a tratava como se ainda fosse bebê.
- Eu não vou sozinha à uma praça à noite com a Sofia só para vermos uma estrela idiota. – Não mesmo, a não ser que o telescópio servisse de arma nuclear, nem pensar.
- Tecnicamente não é uma estrela, um cometa é um corpo menor composto... – Ela pareceu ficar ofendida por eu ter chamado o cometa de estrela.
- Tá bom, chega. Mãe, eu não vou sair de casa, só arrastada.
- Você quer complicar, Mellanie? Então vamos complicar. – Ela me ameaçou. Nada mais foi dito depois disso. Confesso que fiquei com um pouco de medo, minha mãe era capaz de qualquer coisa para ser promovida à coluna policial. Irônico.
Sofie tivera que sair para arrumar um lugar onde pudesse ver o tal cometa e eu tive que me contentar com a tevê. A novela mexicana não estava tão boa hoje, a atriz que interpretava a Kate Lúcia tinha brigado com alguém da produção e se recusara a gravar aquele capítulo, então basicamente Maria Antonieta ficou tramando contra uma boneca inflável. Desliguei a televisão e senti meus olhos brilhando quando contemplei a noite estrelada que havia crescido lá fora. Isso significava que a pessoa que eu estava esperando estava prestes a chegar. A campainha soou exatamente na hora em que visualizei a imagem dele em minha cabeça.
Estranhei a atitude de tocar a campainha, estava esperando que ele descesse pela sacada como gostava de fazer. Olhei pelo olho mágico para me certificar de que era ele, minha paranóia não estava me deixando ser imprudente de novo. Sam não estava lá. Um garoto louro e alto estava postado na minha porta carregando uma mala, seus cabelos em cachinhos quase escondiam os olhos castanhos claros, mas não escondiam o grande sorriso aconchegante que exibia. Era bastante bonito, mas, depois do Sam, não acredito que algum outro cara iria me surpreender nesse sentido. Sua aparência física não impediu que eu pensasse que poderia ser qualquer outro maluco armado. Peguei a primeira coisa que eu imaginei que serviria para enganá-lo. Abri a porta devagar.
- Quem é você?
- Posso entrar? – Ele perguntou calmamente.
- Só fique sabendo que também estou armada. – Fiquei observando sua reação, não parecia um psicopata. Com cautela, deixei que ele entrasse.
- Isso é um secador de cabelos? - Ele perguntou quando entrou e olhou para as minhas mãos. Pareceu achar tudo uma graça.
- É, mas eu não estava me referindo... – Tentei justificar. Ele riu mais uma vez.
- Meu nome é Noah. – Estendeu a outra mão que não estava segurando a pasta preta para que eu a apertasse.
- Ah, tá! O amigo da Sofie... – A voz da minha irmã soou na minha cabeça “Não somos amigos!” – Quero dizer, dupla pro trabalho...
- Então ela já falou de mim?
- Falou, depois de minhas milhares tentativas de formular perguntas diretas. – Ele riu de novo. Não sei que mania era essa dos garotos mais velhos ficarem rindo das minhas frases atrapalhadas.
- É, ela é bem engraçada nesse sentido. – Uau, ele achava Sofie engraçada, só isso me fez perceber que deveria ser outro gênio. Porque, nossa, somente um gênio conseguiria rir do outro, porque, para isso, seria necessário entendê-lo.
- Posso ajudar em alguma coisa?
- Sofia esqueceu a pasta no laboratório. – Levantou a pasta preta e brilhante que carregava na mão esquerda. – O endereço estava na etiqueta. – Em uma caligrafia muito fina pude ler:
Caro estranho,
Em hipótese alguma abra essa maleta.
Caso seja um ladrão, o sistema de segurança está ativado e isso é um aviso para evitar a perda do seu braço.
Favor entregar no seguinte endereço:
Uau, minha irmã era baixinha, mas estava enfrentando até ladrões imaginários. Eu também não deixava de enfrentar uma briga, deveríamos ter herdado isso de alguém, provavelmente do meu pai, já que a minha mãe não parece ser muito boa de discussão.
- Obrigada... Você fez o caminho todo até aqui só para entregar isso? Não deveria ter se incomodado, ela nem deve ter percebido que esqueceu a pasta, deveria ter entregado a ela no curso de hoje. – Claro que achei bastante legal da parte dele andar uma distância enorme para nos entregar aquela mala inútil, mas era bem mais prático entregar diretamente a Sofie.
- Oh, achei que ela iria precisar dela antes...
- Desculpe, não quis ser grossa. Obrigada. – Sorri. – Pena que ela não está aqui agora, foi ver se poderia achar um lugar para observar uma estrela amanhã.
- Um cometa? – Tentou entender o que eu queria dizer.
- Isso aí. – Mesmo tipo de gênio que a Sofia, se ele não fosse mais velho que eu, poderia torcer para que os dois tivessem um caso. Ele era bem atraente e seria bom para ela ter um namorado.
- Se quiser posso levá-la ao planetário amanhã. – Ele ofereceu. Parecia gostar bastante dela. Talvez eu tivesse a impressão de que a Sofie é isolada porque no colégio não há mais muitos gênios, acho que, no meio deles, ela deve ser mais sociável. Eles devem entendê-la, acho bom que fique mais perto de gente parecida com ela, quem sabe não se sinta tão sozinha?
- Não sei... Pode ser perigoso... – O meu desejo de que minha irmã pudesse finalmente ter uma vida normal, com amigos e talvez uma festa de aniversário que não envolva somente eu e a vovó não diminuiu meu medo de deixá-la sair sozinha com um cara que também não parecia o tipo que conseguia se defender. Apesar de ser bem bonito, não era tão musculoso quanto o Sam.
- O quê? Você acha que eu e a sua irmã...?
- Quê? Não! – Era um absurdo eu desconfiar disso. Sofie tinha apenas treze anos e Noah parecia ter uns dezenove. Que eu saiba, pedófilos costumam ser bem mais velhos e eu percebi que ele só estava tentando ser amigável. – É só que... É à noite e tal...
- Ah, mas o planetário é tão divertido! – Eu certamente tinha outra idéia de diversão. – Você poderia ir também...
Fiquei na dúvida se isso era um convite para sair ou se ele só estava tentando se certificar de que eu não havia entendido errado e pensado que ele e a Sofie iriam fazer outras coisas debaixo das estrelas.
- Fique parado. – Sam ameaçou quando apareceu do nada no corredor segurando algo que parecia ser um cano enferrujado. Tinha pulado a sacada de novo.
- Sam, ele é só um amigo da Sofia. Abaixe isso. – Tive dó do Noah, era a segunda vez que alguém lhe ameaçava com uma arma hoje. Se bem que eu não sabia se um secador de cabelos contava como arma.
Sam abaixou o cano com cautela, ainda estava desconfiado se eu não estava dizendo isso forçada. Caminhou até o meu lado e passou o outro braço sobre meus ombros. Ficou observando Noah, que deu uma recuada ao ver o homem de mais de 1,80m encarando-o.
- Bem, acho que não, né? Enfim, se quiser que eu leve a Sofia, ligue. - Deixou um cartãozinho em cima da mesinha de centro e começou a caminhar em direção à porta. Tive a impressão de que o susto de ver alguém surgindo no meio da sala o ameaçando com um cano já havia passado e pude notar um leve sorriso nos lábios do Noah. Ele era um garoto da razão enquanto Sam era, visivelmente, da força física e eu sei que os inteligentes sempre pensam que o cérebro supera os músculos, Sofie era exemplo disso.
- Pode deixar... Obrigada mais uma vez. – Respondi tentando me livrar do braço do Sam para poder acompanhar Noah até a porta, mas ele não deixou. Ele mesmo passou à minha frente e fez questão de fechar a porta para o loiro, que não pareceu se importar. – Por que fez isso? – Perguntei quando a porta já estava fechada e ele já tinha ido embora.
- Não pode ficar forçando o pé. – Respondeu mais descontraído, a face de repulsa havia sumido.
- Ele só estava tentando ser educado.
- Educado demais para mim.
- O que quer dizer? – Ele não estava seriamente duvidando de um amigo nerd da Sofie, estava?
- Ele estava te convidando para sair.
- E por que isso te incomoda? – É, tinha uma resposta que eu queria ouvir.
- Porque eu prometi que iria cuidar da sua segurança e não conheço esse cara. – Não era essa a resposta que eu queria escutar, me irritei.
- Está me proibindo de sair com ele? – Eu odiava quando tentavam me impedir de fazer alguma coisa. Como eu disse, tenho o gênio muito forte e não aceito ordens assim tão fácil.
- Não, se quiser sair, saia, mas não poderei te acompanhar. Duvido que ele possa cuidar de você e da sua irmã caso aconteça alguma coisa. – Falou tranquilamente enquanto se sentava no sofá, ele sabia que havia me ganhado no papo. Eu era desafiadora, mas não a ponto de colocar a segurança da minha irmã em jogo. Sentei-me ao seu lado.
- Eu não vou.
- Não?
- Não.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, essa discussão pareceu esfriar as conversas que, em tão pouco tempo, tínhamos nos acostumado a ter. Eu comecei a refletir se o perigo era assim tão próximo, se havia chances de sermos atacadas até mesmo enquanto víamos uma estrela estúpida.
- Está brava comigo? – Ele perguntou depois de algum tempo que passamos calados.
- Não. – Respondi sem pirraça, mas ele levava minhas frases curtas como sinal de que havia alguma coisa me incomodando.
- Então o que é?
- Nada.
- Está com medo? Olha, Mel, eu não quis te assustar... Não acho que também seja dessa maneira, que possa acontecer alguma coisa a qualquer hora, eu só estou tentando ser cuidadoso. – Olhou para mim como se estivesse pedindo desculpas. – Você pode ir aonde quiser.
- Eu não queria ir ver essa estrela idiota.
- Tem certeza?
- Tenho. – Ele olhou para frente chateado, acho que se sentia mal quando eu dava essas respostas incompletas. Decidi parar de ser chata com alguém que só estava querendo me ajudar. – Você acha que tem problema se ele levar a Sofie?
- O que ele tem com a sua irmã? – Ficou um pouco assustado, como fiquei quando pensei na hipótese de os dois terem alguma coisa, mas também ficou satisfeito por eu ter resolvido falar alguma coisa.
- Nada. Parece que eles estão ficando amigos. Quero dizer, se conhecem há pouco tempo, mas estão se dando bem.
- Como eu e você? – Olhou intensamente para mim ao dizer isso.
- Acho que sim... – Dei de ombros. – Espera, está tentando dizer que é meu amigo? – Perguntei em tom brincalhão, tínhamos essa espécie de competição para contrariar o outro.
- É, mas agora lembrei que você me deixou na chuva ontem... – Ele sorriu.
- Sem graça. – Fiz uma careta.
Continuamos a conversar animadamente a partir daí. Acho que ficamos mesmo amigos em tão poucos dias, isso me deixava mais feliz e, às vezes, me fazia esquecer dos tantos problemas e indagações que tinha naquele momento. Comparávamos nossas preferências e discutíamos sobre música, televisão, filmes e, até mesmo, nossos nomes preferidos para colocar em um filho. Nossa conversa era tão divertida que nem percebíamos a hora passar e só fomos interrompidos pela ligação da Sofia avisando que já tinha ido diretamente para o centro.
- Então estão achando que você é uma agente? – Sam riu bastante quando narrei meu dia no colégio. – Desse tamanhinho? – Perguntou em tom de zombaria. Taquei uma almofada em sua direção e ele a pegou novamente. Tinha os reflexos bem rápidos.
- Eu poderia ser uma agente se eu quisesse... – Isso era totalmente mentira, mas, como sempre, não quis dar o braço a torcer.
- Sei. E iria combater quem? Os sete anões? – Sorriu novamente ao dizer isso. Não achei graça.
- Tamanho não quer dizer nada, tá? E, também, eu sou relativamente normal para as garotas da minha idade... Você que é alto demais.
- Que bom. Porque se eu fosse como aquele loirinho... Você é que teria que me proteger. – Zombou de novo.
- Esqueça o Noah. E eu te protejo de dia...
- Ah é? Essa é nova. Como? – Ele sorriu e desviou o olhar do jogo que estava passando na televisão para me ver.
- Eu fico observando se não tem ninguém suspeito por perto... Hoje à tarde mesmo, percebi vários passos aqui em cima, então tentei ouvir pela sacada o que estava acontecendo, era a voz daquela May. Passou a tarde com você.
Ele não disse nada por algum tempo, mas sei que a minha preocupação tinha lhe tocado bastante. Sam nunca tivera alguém que olhasse por ele quando ele, bem, era outro Sam.
- Então ficamos assim? Eu te protejo de dia e você me protege à noite? – Perguntei para quebrar o silêncio.
- Claro, pequena, a gente se completa. – Ele sorriu, desta vez, com simpatia e acariciou os meus cabelos no topo da minha cabeça. É claro que se fosse alguém diferente hoje à tarde, eu não poderia fazer nada com o pé engessado e, provavelmente, não poderia mesmo se estivesse sem o gesso. O fato é que eu gostava de pensar que estava retribuindo o favor que ele estava me fazendo. Afinal, ele não precisava ficar aqui tomando conta de mim, eu quebrei o tornozelo porque fui teimosa e, no fim das contas, Sam não era a causa do que havia acontecido, era eu mesma. Ele estava me ajudando por pura bondade, mesmo que dissesse ser uma pessoa, ou personalidade, movida por ódio e vingança. – O que está pensando?
- Na Sofie... Ela queria mesmo ver o cometa amanhã. – Menti.
- Por que ela não vê daqui mesmo?
- Mamãe quer nos expulsar de casa amanhã à noite.
- Por quê? – Ele colocou a televisão no mudo e virou-se totalmente para me encarar.
- Ela vai dar um jantar amanhã para os executivos do jornal onde trabalha.
- Onde você estava pensando em ficar? – Ele franziu as sobrancelhas.
- Eu ia ligar para a Rebecca, mas aí lembrei que ela vai a um luau. É por esse motivo que eu pensei em ir com o Noah e a Sofie ao planetário. – Expliquei olhando diretamente para o seu rosto bonito.
- Não quer ficar comigo? – Ele quase sempre tirava as conclusões erradas das coisas. Só porque eu não tive coragem de pedir para que ele ficasse comigo em outro lugar que não fosse a minha casa, não significava que eu não queria.
- Não é isso... É que pensei que, bem, amanhã é sábado.
- O que tem?
- Você poderia estar ocupado.
- Você é esperta demais na maior parte do tempo, mas às vezes é tão boba.
- Isso quer dizer exatamente o quê?
- Que você fica comigo amanhã. – Disse como se o assunto estivesse encerrado. Eu normalmente iria contestar, mas eu não tinha mais onde ficar se não fosse com o Sam.
Pensei o quão estranho isso seria. Afinal, apesar de estar sozinha com ele na casa dele não parecer lá muito diferente de estar sozinha com ele na minha casa, a mim soava como coisas muito distintas. Em casa, eu me sentia tão à vontade que não pensava direito em como essa situação era embaraçosa. Na casa dele, eu sei que ficaria encabulada e envergonhada e vou querer ir embora na metade do jantar da Sarah, o que a deixaria tão nervosa quanto se soubesse que eu fico sozinha com um vizinho lindo à noite dentro de casa. Ele ficou me olhando tentando imaginar qual era o problema desta vez.
- Você não precisa ir se não quiser...
- Não é isso.
- Então o que é? Mel, se vamos tentar essa de amigos, precisa ser franca comigo.
- É que... – Eu não sabia como dizer sem que ele se sentisse ofendido, afinal, se eu me expressasse mal poderia parecer que eu estava pensando que ele queria me levar para a casa dele para se aproveitar de mim. – Eu não sei se a minha mãe vai gostar disso...
- Do quê?
- Eu e você... Sozinhos.
Eu sei que isso não esclarecia muito as coisas, mas ele fez uma expressão de quem havia entendido o problema.
- E se não ficarmos sozinhos?
- Quê? – Não tinha entendido direito porque tinha sido pega entre reflexões.
- Vamos ao luau.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
27 comentários:
è boa de maiiis
quero o sexto capitulo'
A-MEI!
queeero maaais!
Perfeito *-*...
Já estou morrendo de ansiedade para o próximo capítulo...
Necessito do proximo cap para minha sobrevivencia *o*
Ai a cada dia mais to amnado essa serie!!!Sabe cada ves que leio aprece que sinto mais inspiração para continuar a fazer a minha serie!!!
Amei continua postando os proximos capitulos....
luau... huum q sexy
livro genial estou amando. queria q uma editora publicasse de verdade!!
tbm quero o livro na livraria!! o livro eh otimo mas ler na net eh tao ruim :(
soh to persistindo pq o livro eh mto bom!
Quero o sexto, o setimo o oitavo o milesimo jáááá :'(
VICIADA
Comecei a ler ontem e jah sou fã
To adorandoooo!!!
qro o capitulo 6 logooo!!
Parabéns, o livro tah perfeito!!
*-*
Cara, comecei a ler hoje. Tô adorando, é muito bom. :))
Quer ver o que vai acontecer :D Parabéns.
ta d+...kara to viciando...
yaaaaaaaaaaaaaaaaaaaay!
adoray! qdo sae o proshimo capitulo?
xoxo
Jojo
♥
tem + o q falar?
Criatividade pura. Blog Excelente. História emocionante.
você merece sucesso!
AMEII....posta o proximo logo vai...:)...quando vai ter bjo ..:D
Adorei esse!!
meu deus vicie cara *--*
preciso do proximo D:
ta otimo :*
Muito bom, parabéns!
Como funciona os posts? Você tem dias certos pra postar ou é aleatóriamente, quando você tem tempo?
LINDO +.+
viciante!
carak este livro é maravilhoso... não desgrudo do pc +....
a cada capitulo melhora muiiiito0
VAMOS AO LUAU ? DEMAIS ! AMEI, GAMEI, APAIXONEI e vicieeei
D-E-M-A-I-S ♥
super lindo!
Quero um sam pra me levar ao luaau!!
todo mundo no luau! já é de madrugada e vou ler o próximo!!
Postar um comentário